Tinha um irritante sorriso de bazófia e aquela distinta sobranceria de um patrão, falava do seu percurso e de si próprio regurgitando há décadas a mesma ladainha, empregando um tom de lenda, e essa narração acabou replicada, em parte pelo menos, nos necrológios, o que sinaliza como ele soube ler a tendência para reduzir tudo a uma caderneta de cromos, tendo desde muito cedo tratado de fomentar o panegírico em redor da editora e do seu papel, esse canto tão fantástico porque fúnebre, enquanto a casa se governava e o negócio se robustecia, e ele encarnava aquele género de heróis por conta de outrem que sempre povoaram o campo da edição. Assim, se lhe deve ser reconhecido o inegável mérito de ter criado um catálogo impecável, que defendia um tribunal às avessas, e a subsistência de um modo implacável da crítica integrando os contributos de anarquistas, comunistas libertários, situacionistas, erguendo uma galeria de autores em que o todo era manifestamente mais poderoso do que a mera soma das partes, por outro lado também se lhe pode apontar uma espécie de desencorajamento dos autores empenhados em fazer esta mesma crítica anticapitalista entre nós, sendo que nos últimos anos a própria revolução por cá parecia ter sotaque estrangeiro, como uma ideia que só poderia vingar se fosse importada. Podemos reconhecer a Luís Oliveira o ter criado as condições para que um conjunto de colaboradores e leitores – por vezes sonegados ou secundarizados por ele, sempre que achava necessário açambarcar os créditos e ressalvar que a Antígona era ele mesmo – pudessem compor lentamente e de forma muitíssimo coerente uma biblioteca com cerca de quatro centenas de títulos que se tornou um formidável desafio à civilização da alienação, por outro lado, ele mesmo desdenhou em tantas das suas intervenções os elementos mais radicais e emancipadores daquelas propostas, e enquanto as escolhas se mostravam bastante rendosas, não hesitava em recorrer aos tais “silogismos bolorentos” sempre que precisava de justificar a sua visão bastante conservadora e pragmática da empresa onde ele cumpria alegremente o papel do patrão. Mesmo se tantas vezes exibia uma confiança meio delirante, reclamando para si a aura e a distinção dos editores que dissipavam fortunas para dar expressão às vozes e às artes abomináveis, confundia duas esferas, duas formas de orgulho antagónicas, a do homem que triunfou enquanto a proliferação dos livros reduzia a sua esfera de irradiação, e a do tal editor que “escolheu os caminhos selvagens e abandonados pelos senhores do saber social dominante e que conseguiu aguentar-se no tempo” (Jorge Valadas). Acontece que esse triunfo significou em grande medida uma adaptação aos apetites do mercado, nomeadamente uma ânsia por oferecer o tipo de mercadoria que consubstancia uma forma ritual e gestual que passa por envergar o protesto e os sinais de repúdio pelo capitalismo, sempre enquanto símbolo, sem pôr seja o que for em causa, nem corroer as estruturas de coacção. Na verdade, este cinismo apenas as reforça, dando a possibilidade a alguns de se ludibriarem, continuando a consumir de forma impune, e escolhendo estrategicamente quando lhes convém assumir uma distância irónica. De resto, como demonstraram alguns autores, esta estrutura de repúdio serve de álibi ao próprio capitalismo, e não deixa de ser curioso que a Antígona seja um dos raros exemplos entre as nossas editoras que beneficiaram com a fusão realizada pelos grandes grupos editoriais, pois enquanto concentravam pequenas e médias editoras, convertendo-as em chancelas, e absorvendo os catálogos, para logo promoverem uma gestão centralizada, a editora de Luís Oliveira soube valer-se do definhamento da diversidade das apostas editoriais para reclamar a sua imunidade face àquele processo de extinção. Isto permitiu-lhe surgir isolada, com o seu editor a imaginar-se o nosso Crusoé, formulando essa consciência de um náufrago que resiste na sua ilha, entregando-se a acessos de megalomania em que reclamava para si o mérito das obras que lhe chegavam de fora e que ele traduzia e divulgava num contínuo sermão aos peixes, imaginando que sem os ter descoberto e publicado, os autores nem existiriam. No caso de Luís Oliveira, a distorção ainda é mais grotesca, uma vez que do inegável prestígio que alcançou o seu catálogo, um dos aspectos mais assinaláveis é a quase total ausência de verdadeiras descobertas, não editando propriamente os textos, mas limitando-se a fazer uma curadoria a partir das apostas feitas lá fora. Mesmo assim, gostava de se imaginar à frente de um quartel-mestre e adega de ratos, serpes e escaravelhos, uma forma de inversão folclórica com vista a exaltar aquele pequeno coral de espíritos indómitos ocupados a compendiar tantos dos mais ferozes discursos de crítica ao quadro de impostura e opressão a que nos vemos submetidos.Enquanto o sector se ressentia com aquele efeito de esmagamento e abolição do ecossistema editorial, a Antígona reforçava a prosápia, e impunha a sua encenação moral, num zumbido que às tantas operava mais como “um ruído de fundo carnavalesco”. Com insuperável jactância, os materiais promocionais desta reclamavam títulos entretanto exaustos como o da mais insolente editora, refractária, sediciosa, subversiva, transgressora, uma força de resistência, uma conspiração permanente contra o mundo… E isto a um ponto tal em que o projecto de crítica parecia cair para segundo plano, enquanto ganhava relevo um programa de auto-celebração, que se estendia aos próprios leitores, os quais, enquanto se forneciam de textos incendiários que deveriam reduzir a cinzas o quadro miserando da mercantilização e o enredo espectacular, ali participavam num cerimonial em que a aquisição dos livros passava por ir buscar a hóstia maldita, numa liturgia que invertia os signos apenas para reproduzir uma outra ficção beatífica. E aquele discurso absurdamente enfatuado e que se fazia passar por insolência, não significava outra coisa senão uma reconvenção do fetichismo da mercadoria. Leia-se a título de exemplo uma dessas proclamações destacadas em letras garrafais nos panfletos da editora: “A Antígona não aspira conquistar um lugar, modesto que fosse, no mundo das artes e das letras, nem na história assaz respeitável da edição. Se por infelicidade um panteão lhe fosse oferecessem, o único que lhe conviria seria o dos grandes cataclismos, ao lado dos terramotos ou do dia da peste. Da peste; sem dúvida!” Assim, se todos beneficiamos do trabalho de quase meio século de uma editora que se construiu como uma promessa de desobediência, e em que cada livro devia renovar um apelo ameaçador, se não podemos deixar de elogiar as suas edições esmeradas, com óptimas traduções, um excelente trabalho de revisão, e, nos últimos anos, impondo-se ainda pelo cuidado gráfico e com a paginação dos livros, produzindo objectos muitíssimo estimáveis, a própria editora deveria ter dado o exemplo, abrindo a possibilidade a um reflexo crítico do seu trabalho, a que lhe fossem apontados os excessos numa forma de comunicar que passa por gabarolice, no que, de resto, segue a postura do seu editor, que fazia gala dos seus opíparos consumos, alguém que pela sua intervenção emancipadora requeria os luxos de uma aristocracia subversora, mas se nuns momentos se dizia comprometido com “a subversão das condições mentais presentes”, e empenhado em contribuir com as suas edições para a crítica da sociedade mercantil, não hesitou em recorrer aos tribunais quando outro editor se antecipou à suspensão dos direitos de autor sobre a obra de George Orwell, isto depois de confessadamente ele mesmo ter conseguido alguns dos maiores êxitos de vendas da Antígona com sucessivas edições pirata, e que, nos últimos anos, levou ao paroxismo a sua postura de vigarista e troca-tintas indo ao ponto de desautorizar os autores que publicava, abusando de máximas dissolventes e dando a entender que não havia de facto alternativa ao tal regime mercantilista. Assim, mesmo se fazia a fita daquele que veio fazer entre nós qualquer coisa que absolutamente tinha de ser feita, dita, pensada, para que a conspiração se mantivesse enquanto uma operação permanente, uma resistência às ideias feitas, à acomodação, aos conversadorismos, às tantas, a própria persistência, e aquela história de meio século, oferecia-nos uma leitura dolorosa sobre o fiasco daquelas propostas, de como em cima delas foi possível construir um esquema bastante lucrativo, mas não se gerou qualquer contágio ou motim. De resto, se nunca se eximiu de expressar uma visão deprimente do nosso próprio contexto cultural, se não perdia a oportunidade de rebaixar os escritores portugueses, repetindo que era mais difícil um autor entrar no catálogo da Antígona do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha, quando o confrontávamos com essa tão severa apreciação e lhe perguntávamos se já tinha lido este ou aquele título, autor, a resposta era que não, invariavelmente lá reconhecia que não fazia puto de ideia. Portanto, o seu magistério passava por uma obnóxia indiferença e desdém, e se nunca se mostrou muito empenhado em instigar e dar força a um ímpeto de crítica selvagem entre nós, depois mostrou-se muito competente na hora de se servir do estrangeiro como uma assombração desoladora, uma barreira supressora.
quinta-feira, março 27, 2025
Luís Oliveira (1940-2025). Uma revolução com sotaque estrangeiro
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perspectivas
segunda-feira, março 17, 2025
Temos de rezar, sim, não a deuses
mas uns aos outros, até que nos consuma
a chama crua que coze cá dentro
e logo que temperaturas febres se alcança
só pela troca de algo tão breve
como um olhar,
Desembarcamos, vimos,
rindo brilhando
com movimentos bruscos, luzes
desavindas, cheiros, numes,
desse radiante cansaço que se parece
com a embriaguez
o corpo é uma memória comum, mapa
onde abrimos a noite, as senhas
os idiomas corroídos
de tanto nos falarmos a sós
com o escuro desatado, essa canção
que nos deixou água nos ouvidos,
e ainda o embalo duro que toma conta
dos corredores, a impressão
dos que tremem diante do impossível
Viemos pela vida, mas não da que se vê
por aí, tão vista, já gasta
antes a outra, forte e de antiga data,
mesmo se estreita cheia
de vincos, remendos E que incerto
se mostra esse rosto
um rosto tão escuro que não há luz
para abri-lo de uma vez
mesmo para nós, é um susto
a cada expressão, e ao rir-se
mal lhe sobrevivemos
faz meses que cobrimos os espelhos
e ainda falta tudo o que nos vão obrigar
a fazer. Eu, eu, onde me levou isso
tão riscados os papéis, e que promessas
nos fizemos
: um dia destes torno-me discreto
seis meses seis anos mais uns seis
segundos da minha carne à tua
acabo eu mesmo com a minha raça
nem deixo que se oiça outro passo
neste continente absurdo
mas não antes que uma coisa
fique clara, um nó por cima de outro
como a vida exige ser cobrada à morte
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modus operandi
sexta-feira, fevereiro 14, 2025
alguém impôs um limite à música,
respiração que nos iluminou noutros dias.
Houve ordens nesse sentido,
e é para o teu próprio bem.
Há seres que se vêem empurrados
para o passado, trancados na memória
repetindo os mesmos lugares
onde encontraram aquele resumo
falso do que a vida poderia ser.
Quando a presença dos desconhecidos
deixa de surtir em nós qualquer efeito,
o mundo já não nos prende.
Bastam então os elementos para
nos sentirmos a apodrecer, calma,
docemente. Os nomes
começam a despegar tal
como o papel de parede.
Não ousarias dizer mais nada
de modo a não perder o fio.
Tínhamos de sair daqui,
mesmo não havendo outra coisa
é melhor estar de passagem,
não recear pôr termo às coisas.
Que última hora terá o sol
neste lugar para nos vir dizer
que o corpo é uma oração
e que ninguém poderá saber
desta ferrugem que nos consome
a carne, da areia que encontramos
nos bolsos, do deserto que levamos
cá dentro.
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modus operandi
segunda-feira, dezembro 30, 2024
A partir daqui não conta; é o cansaço
acumulado e alguns reflexos que lhe fogem
e se põem a abusar da imaginação.
Já deves ter ouvido essas histórias,
coisas atrozes, delicadezas absurdas,
os ratos que somos em cima da carcaça
dos antigos deuses, e disso
fica este rumor como vizinhança.
Que importa? Lemos versos como nas trincheiras
se masca tabaco, para ocupar a boca,
roendo o vazio, quando ninguém sabe
que fazer com toda esta ausência.
O outro é que repetia: “Ninguém ampara
o cavaleiro do mundo delirante”...
Pois ocupamos as escadas, entre andares
sem subir nem descer, há meses
colhendo folhas, insectos, a fazer chá
se chover, sem despirmos a velha
gabardine. Estamos tão juntos
e não é que sejamos iguais, talvez
nos falte a paciência e o orgulho
que faz inimigos.
Foram bons tempos esses,
prefiro recordar-nos como éramos então,
quando acreditávamos na guerra,
na importância de tomar de assalto
uma colina, uma ponte... Agora
aqueles mesmos soldados reúnem-se
e já não sabem o que viram, que mundo
era aquele, e de roda de um piano
compõem uma música que nem é
para se ouvir, só para estar ali.
A estas horas detestáveis do dia
é tão difícil estar vivo,
os fantasmas mantêm-se bêbedos,
apesar de a noite não passar já
de uma miragem, uma lenda.
Os detectives dormem pouco,
maltratados pelos astros
reviram-se e dão por pistas ou migalhas na cama,
atravessam a cena de algum crime,
fazem-nos mil vezes as mesmas perguntas.
A culpa é nossa, diz alguém, foi isto
o que escolhemos, como grita o velho:
“se não amam o caos, não comem…
Só quem respira o alento da fera
tem o direito de descrevê-la,
erguendo o pó, misturando pétalas e escamas”.
Eu já gostei da vida. Mas agora,
a cada dia, pergunto-me: o que é isto?
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modus operandi
quinta-feira, dezembro 19, 2024
O que é que o som de pássaros tem a ver
com estes lugares de culto, e o hábito
de substituir a perversidade natural
pela ambição de vulgares imitadores
estes que usam tinta e fixam disparates,
pintores, filósofos, fotógrafos, estudantes
de moda, os imbecis do costume, todos
os que perderam o sexo e a fome, e costuram
vezes sem conta as suas fantasias fingindo
uma intensidade criminosa sem levarem
nada até ao fim? Só que depois é o monstro
quem ouve primeiro esses sons, a luta
pela vida das coisas que não podem estar
no mundo. Já tirámos tudo o que foi possível
de sacos de papel, o horror das migalhas
e a disputa entre sombras, mas se queremos
que vejam algo mais, não seria necessário
torturar cada um deles? Repara como
mastigam cada nome e lhe esquecem o rosto,
os detalhes assombrosos, os traços frios,
as hastes, o nariz quebrado, o modo de
pedir com os olhos. Passam-lhe batom
e o sorriso ainda fica um caos, porque é
ainda pior do que se diz, este jogo de azar,
a arma que vai passando de mão em mão,
e mais tarde, ah, mais tarde esperam eles,
cheirando o rastro que deixaste, fazendo
aquelas caras, tirando notas, julgando
que se acabou, e que estão safos, só que
depois ainda é a vez dos nossos ecos.
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modus operandi
quarta-feira, dezembro 18, 2024
rompe e rasga, põe aí o recorte
e o acidente natural, tudo foge,
se esquiva a si mesmo, tudo quer
lançar-se sobre outra coisa,
a fantasia das coisas é o diverso,
a sombra misturada, a vertigem
sexual, cada quarto íntimo é
uma tremenda confusão, ficam
impregnados os sinais de uma
metamorfose incompleta, dolorosa
mesmo a consciência é apenas
a passagem, e cada um nasce já
com a sua lâmina, o tempo fere-se
entre nós, e é depois de um corpo,
da necessidade absoluta, quando
desse gosto de que antes não
sabias como te saciar, é então
que deixas esse gesto a meio e
sentes o eterno cansaço de certos
meses, puxas os lençóis sobre
a cabeça, porque no fim nada nos
satisfaz, a poesia é a interrupção
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modus operandi
terça-feira, dezembro 17, 2024
Sem fortuna de espécie alguma, com o nome
por fazer enquanto outro feito já contra ti
surge amiúde na boca dos demais
como pérola negra desse baixo tom de intriga
e da amargura de tanto morderem no vazio
mas se, da sua ameaça, resta um gosto acre,
quanto à força tomam-na por devaneio
pois tudo o que vive lhes causa tonturas
tudo o que importune a ânsia de juros
que os leva a rebaixar a beleza, irrita-os,
como cada pedra refazendo o seu voo
ao reanimar os estilhaços e a corrente
entre as ilhas obsedantes, a favor
da irrupção do quotidiano no mundo divino,
seus lugares e vozes, tudo isso os assusta.
Num convívio do real com o irreal,
a cada manhã o poeta desperta diante
da sua insuportável metamorfose,
tão doce para nós, vem e ofende o mundo
devasta-lhe o pudor, as convenções, mas
e estes comedores de lótus, que fazem?
Apenas se repetem, só criam espuma
em vez de ondas, e em vez de igualarem
aquele transtorno exaltante, vulgarizam-na
para que se pareça um pouco com eles.
Nunca este ou aquele homem puderam
apropriar-se dela, dessa luta para tirar
a forma do caos, imprimindo de novo
o seu escândalo. Mas que fazem os imbecis?
Falam tanto dela, querendo apenas dizer
uma e outra vez: eles mesmos, a posse,
esse vazio dos que respondem sempre
à chamada, sem nada de perturbador que dizer.
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modus operandi
segunda-feira, dezembro 16, 2024
Das cem vezes que fomos ao fim do mundo,
pelas contas que tu fazes, eu já preferia
apenas quedar-me sentado a ouvir
esperando pelo dia em que só nos reste
recuar, dar claridade ao que ficou
pelo caminho e rever tudo ao longe
a despegar da casca, emendá-lo, pôr lá
novas cousas e assustar os que morrem
com o dedo encardido nalgum mapa
temos o mar ali à direita, dando-nos corda
e alguma pena, soando como o riso
dos afogados, mas dizes tu que ainda
cercamos terras inverosímeis
aquela desmesura lenta do que
nos assombrava, o que persiste hoje
sem perfume e só nos cansa, assim
de bruços sobre mesas de pouca luz
parece que desenhamos um do outro
o contorno no pó que se acumula.
Neste país de gente acenando
para alguém que foge, tão cedo isto
a que chamam vida nos desmoraliza.
Lavamo-nos só de raro em raro,
como velhos reis sem apetite nenhum,
enredado o suspiro nesse murmúrio
em que nos cozem, se retemos memórias
é só do que se viveu por fora, eu aprendi
noutros mundos vi sobre outros muros
espiei tirando notas volumes e formas
por isso antes que a imaginação se esgote
e só a oiçamos tossir encher-se de bolor
volto regresso lá como me lembra
entre os detritos e por onde ainda dói
com o sangue tomado de um ritmo
capaz de corroer os ossos como ferrugem
e faltando isso um dia destes até prefiro
morrer destelhado como o Assis a
lamber o reflexo na montra duma livraria
quase distraído quase desinteressado
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modus operandi
domingo, dezembro 15, 2024
Vamos medindo a morte a cada verão
e mesmo se a luz já não nos diz respeito
tentamos recuperar uma província:
esta, antes que escureça de vez,
antes que o mundo perca aqueles traços,
esse rosto de que gostaste tanto…
Os pássaros pousam na flecha do catavento
que aponta a Sul, um céu baixo ferido
roça-se nos telhados, nas vigas
que sustentam a tarde, um sino arrulha
para não espantar o silêncio que ainda dorme,
cada um se defende com o olhar,
segurando a vida e a sua distância,
polindo a herança de uns quantos trejeitos
como esses primitivos que carregam
por toda a parte o maxilar inferior
dos seus mortos. Estamos gratos
sobretudo por esta tristeza,
a atenção aos frutos que não foram
colhidos e já só sabem a verme,
o regresso a Drummond e à epopeia
dos pobres diabos, essa distracção
que nos leva a olhar pelos outros
a apaixonar-se sem a menor vontade
de interrompê-la, de alimentar as ilusões
do costume. Colhemos uns detalhes,
inventamos outros, e podemos admitir
que gosta de trabalhar em hotéis
sobretudo nestes que já vão caindo
aos bocados, e que deve agradar-lhe
aquela arrastada presença anónima,
os gestos sem grande significado,
a sensação de viver pelos fundos.
A beleza podia complicar as coisas,
mas já não tem de se preocupar com isso,
muda a roupa de outra cama,
apanha um brinco, um corta-unhas,
escuta uma música abafada,
sempre que ouve as conversas
sente um cansaço enorme da vida.
Deve ser bom tomar café com ela,
deixar que os séculos apodreçam
sem tentar salvar qualquer essência.
Nem abrir a boca, não dizer mais nada.
Pois é certo que, no fim, são as coisas
que dissemos que um dia regressam
para dar cabo de nós.
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modus operandi
terça-feira, setembro 17, 2024
Entre o barulho acha-se hoje uma epopeia
nos ruídos que se perseguem, entre as frases
abertas como navalhas, ou neste copo
que me deixa nos lábios o gosto
de um sonho que não era para mim
e dele guardo o rasto de um corpo estranho
um apetite por aquela que nem morta,
vive-se abalado pelo impossível,
deitando as mãos remexendo nos ciclos
e um dia aprendemos que o futuro
é tão antigo como o passado,
mas se ao menos eu soubesse sempre
o que sei agora, se me fosse oferecida
a oportunidade de um crime voraz
não diria outra palavra,
morre-se demasiado na imaginação
cada vez menos a meio no vinco da vida
nos extremos do mal ansiando o novo perfume
e então que pressa de sacudir o cadáver
ameaçar cada uma das pulgas
levar a sarna a outros fins
fazer nascer na própria carne o verme
que ri e aumenta a fome e o escuro
tudo aquilo que te rói para lá da vida
o gozo de ir ao lago pé ante pé
e estrangular o cisne, o próprio canto
lançar esses reflexos procurando outra forma
na superfície da água
falamos e as palavras fazem-nos ver
e ter claro como tudo isto será esquecido
roubar é por isso o verdadeiro gesto
entre todos o mais doce e misericordioso
guardando horas perdidas, dando-lhes
continuação, outras vistas
flores voltadas para sóis destruídos
e como estas nos apresentam a luz,
o calor de tudo o que se acabou,
as crianças que chegaram à fala
imitando os pássaros,
apanhando os próprios ecos
para os levar a outro fundo
desenvolvendo cores amargas, a razão
de tudo quanto treme, como eu ou ele
diante da nudez dela
dos gestos repetidos pelo espelho,
os dois juntos encantados vimos
como acalmavam o tempo
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modus operandi
segunda-feira, setembro 16, 2024
Com isto nunca quis gravar porra nenhuma,
mas mexer com os materiais da invenção,
batia as letras como quem pega e compara
os tipos, monta cada frase e passa tinta
num ritual para vir esperar algum ritmo
que se impusesse como uma debandada
uma ordem fabulosa erguendo nuvens de pó,
mas cedo dei com os notários os enredos
memoriosos relativos à posse, aos títulos
e percebi como por um receio qualquer
quiseram tornar as lendas imperecíveis
servindo-se da tinta, uns ditando outros
transcrevendo, fazendo cópias truncando
não tanto o sentido como a sonoridade
e às tantas os astros ficaram mudos,
deixando de exercer a sua rigorosa fluência,
o ritmo sofreu, e o ímpeto, claro, em breve
as imagens achavam-se desencontradas,
os sons vagavam incapazes de se reunir
às coisas, os nomes pareciam cascas,
restava perder-se no silêncio levando só
um texto para se misturar a ele, sangue
com tinta, reescrevê-lo, rasgar as folhas
meter os bocados na boca e recuperar
enfim tudo sem vontade de estragar nada,
tornar-se analfabeto enfim sabendo-o
de cor, e perder a relação entre os sons
e os signos, mas murmurá-lo para se
adormecer, do mesmo modo como a casa
responde ao vento, e a esse assédio senil,
e se a tempestade aqui é leitura suficiente
o candeeiro recita de memória
aquilo que nos foi dito pelos mais velhos,
e eu lembro-me que adorava não perceber
metade, coser os pedaços que apanhava
bem vivos no ar, aquelas conversas parecendo
eternizar-se na ânsia de captar algum detalhe
quanto à natureza do próximo mundo…
Por agora a madrugada ainda assinala
um território sagrado, e nós caminhamos
encostados à pulsação, atentos a ínfimos
movimentos no escuro, a corpos
que nos deixaram o ritmo a que respiravam,
respeitando a lua e o seu luto, vagueando
junto a ela e na companhia dos lobos,
já a mim sempre que a olho dá-me
a impressão de que deve tresandar a álcool,
acho-a triste, afinal só temos esta ronda
tão larga, mas tão dependente de outro corpo,
e recito-lhe coisas, peço-lhe a opinião,
invento diálogos, apostas, desafios:
basta que chova e já me sirvo disso e juro
bater à porta daquela de quem ainda
vou escrevendo o nome, isto se a lua
e o vento me derem cinco minutos,
um intervalo claro, perfeito
de modo a que se torne indelicado dizer
que não, estando ali eu, de noite e à chuva,
implorando que abra e me convide a entrar.
Separador:
modus operandi
segunda-feira, setembro 09, 2024
As estações já não aguentam qualquer
efeito de composição, nenhum vaso
contém seja o que for, não se conhece já
ninguém pelas coisas que diz,
talvez tu que ainda foste uma mulher
quando nenhum de nós presumia saber
o que isso significa, a insolência
a candura, os sinais distribuídos pelos dias
e sobre a pele, trazíamos e levávamos coisas
do museu das nossas memórias
para fazer sentido do que ia sucedendo,
andávamos por ali entre as estátuas
de feições corroídas e das quais podíamos
colher nos dedos a saliva dos séculos,
tinhas a tua pequena e confiante voz
de quem canta entre o quarto, o chuveiro,
o corredor, essa existência nua,
tinhas o teu poço as rezas oferecidas
as conversas ao telefone a más horas
as acusações dirigidas a deuses de nada,
a tua preocupação em fechar a torneira
do gás na cozinha, como se imaginasses
que a morte pudesse visitar-te
por um descuido desses, cuidados inúteis
que te tornam compreensiva, próxima até
daquela mítica letargia dos rapazes,
também a mim a única moral
que me importa é o tempo, ter bem claro
a todo o momento que já tudo aconteceu
e que só resta escolher o ângulo, como as aves
que emigram de uma terra para outra,
porque o elemento em que se movem
é o mesmo que respiram, por isso largam
em bando, não ficam para assistir
à desolação, tornam-se um primeiro sinal,
e eu gostava de falar o que elas falam,
uma linguagem que fosse em si mesma
um alimento, um presságio, sons vivos
que com a sua mera propagação
já nos dizem se o ar se tornou amargo,
ter um nome em si mesmo difícil
como um gole que lhes encha a boca
e os obrigue a cuspi-lo, com um gosto
a maldição ou ao menos a veneno.
Separador:
modus operandi
segunda-feira, agosto 19, 2024
A memória de um violino chega a ser
o mais importante, a escavação
que foi necessária para lhe arrancar
aquele som, para restituir
cada um dos ossos
a uma composição imaginária.
E se a perfeição é odiosa, não muito
longe, colhe-se um defeito admirável,
aquela sublimidade que buscavam
os exploradores polares transformando-se
em manchas nessas distâncias que ainda
falam entre si, onde se ouve o eterno
girar do universo e a sua eterna morte
ecoar na frágil carne dos homens,
o mesmo pulso que ouves com as mãos
sobre as gigantescas pedras de cantaria,
a escala dolorosa do que nos cerca,
dos mitos, daquilo que já não parece
feito para nós. Alguns meses sem falar
e regressa o prazer de isolar as palavras,
de sentir o caule destas roçar num frasco,
como a tentação de dar cabo do estilo,
traduzir apenas esse resto de sol
que fica nos ossos, e a luz dos lugares
onde o mundo não existe, onde te achas
entre corpos que já não se importam,
que abandonaram as histórias
e que o aguentam simplesmente. Vens
a um sítio destes e vês-te prisioneiro
de um rosto obsessivo, da sua mania
de olhar, da insistência sem uma palavra
a que te agarrares. E nem isto, nada.
Separador:
modus operandi
quarta-feira, agosto 14, 2024
Prefiro os escombros
e também o vento que entre eles
soube aprender línguas,
cobrir as maiores distâncias,
nesse tempo falávamos mais
e o mundo parecia tremer aberto à ênfase
ao embalo que levava a frase,
através da infância chegava-se a todo o lado,
mas hoje é difícil,
aquilo que importa resiste sem ser visto,
e dependendo da hora
se forem suficientes os que dormem
ainda se pode escutar a canção dos bosques,
se cresceste do lado da impaciência
és derrubado todas as tardes
pela inclinação e os contornos que assume a luz,
persiste um rumor por aqui que atrai os navios,
os homens pedem um pouco de água doce,
e o ar ganha outro peso,
é teu vizinho esse pobre e velho homem
cego, cego como um morcego
e que leva o seu murmúrio à frente
alimentando-se como Homero
das vozes, dos ecos mais antigos
e que se acham tão vivos como dantes
pois comovem igualmente esta terra,
afinal somos ainda os mesmos,
e a ti toda essa proximidade
tem-te cada vez mais atento;
escuta, força o inferno
a sair da mais branda matéria,
vai buscá-lo e à beleza onde tiver de ser,
e quando for hora de regressar aos navios
entre as vozes gregas estará a tua.
Separador:
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terça-feira, julho 30, 2024
E que importam todos estes trabalhos,
afinal de que nos serve um tão grande apego,
fazes sequer a menor ideia
do que pode seguir-se?
Por alguma razão aos condenados
interessa tão pouco falar no futuro.
Quem chega ao mundo deve libertar-se
de tanta tralha, e só então lhe tocará
um desejo enfim renovado de pôr os pés na terra
depois de uma tão grande fadiga nos museus.
Contamos os degraus enquanto a luz
ganha as suas antigas propriedades,
e é possível perceber como a vida
lhe responde,
como isso te deixa imóvel a assistir
enquanto tudo à volta se transforma,
nesse modo que há de arder
encostado a ouvir a canção e o tumulto
dos mundos que houve,
e alguém terá de apagar-te o corpo com as mãos
até dele restarem apenas cinzas, alguém
que te desperte do embalo e abandono
a uma tão melodiosa gravidade.
Haveremos de falar mais tarde,
reaver a sequência olhando os frascos
de compota cheios de pirilampos
apanhados lá atrás dançando em honra
de uma era há muito extinta,
passaremos um bocado os dois
a ferver num pote umas ervas
e o próprio nada, que perfume!,
todo esse alimento para oferecermos
às distâncias, reanimando-as.
Agora que a morte começará por fim
a soar-te como deve, como uma piada
com toda a sua redundância, ela mesma
exprime a única tarefa ao nosso alcance:
trazer um pouco de ordem
entre a devastação, colher no lixo
as semelhanças, a ruína enternecida
e os seus delírios. Basta ter o sentido
e mesmo entre o pó nos será possível
beber a tonalidade das coisas,
deixando que as antigas vozes
de novo façam vir à superfície
aquela jubilosa frase infindável.
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segunda-feira, julho 22, 2024
Procurado por algum crime que hoje
já esqueceu, desviou-se da rota, viu
coisas que não esperava da carne
e foi tomado de outra obsessão,
buscando algum fragmento perdido
do relato que impôs esse intervalo
entre a sua vida e ele, interrogando
tudo na varanda entre cigarros, plágios,
como tantos nessa idade incerta
bebemos cerveja, olhamos o mar
imaginando que mais poderá seguir-se,
trocam chistes e lendas estes que ainda
se mostram capazes de alguma ênfase,
descascando a realidade como uma peça
de fruta, deixam-na pelos quartos,
onde passaram temporadas do avesso
os astros beliscando-os no sono,
entre visões recortadas por outra luz
sob o efeito da qual recolhem
a sua forma mais lúcida. Mais tarde
o sangue há-de perder o gosto pelo mundo,
mas por agora a noite estende-se sem
acatar limites ou proibições, cada nome
suporta um certo desgaste e ilumina
esta época em que os verbos se conjugam
no plural. O navio aos poucos deixa-se
consumir, a água sob a quilha, a onda
corroendo a popa, da proa esteiras
correndo, onde era a amurada, agora
há videiras, e trepadeiras onde era
o cordame, também as sombras acabam
por consumir-nos o reflexo, o ar sem vida
vai ganhando nervos, e o som que então
nos acerta como um harpão até estes
hábitos próprios de quem se habitua
ao cativeiro, e da vinha que tomou conta
dos remos colhe as uvas com que alimenta
os seus leopardos, entregando-se ao felino
lazer enquanto dispõe sobre o soalho
as antigas escamas, e se despede de vez
do azul profundo que teve ao seu redor.
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modus operandi
quarta-feira, julho 10, 2024
Os nossos rostos surgem nos mais frágeis
reflexos, como eles os recortam
não fazendo ideia com o que nos parecemos
e se jogámos tudo como danados
não poderiam saber que fomos
a descoberta feita uns
pelos outros, desmentidos tocados
de um modo que nem sonham
se sequer sabem como se diz
a luz que sobrevive sem se deixar prender,
e se queremos falar-lhes mais fácil
se torna fazer-lhes a guerra
quando nada dariam por esse antigo encanto
de ver passar, como a alma se cala
chegados àquela velha
doce indiferença, do outro lado
desses miúdos que ouvimos ainda
falar sempre de outros lugares
com um cuidado terrível
um modo inclinado de se dirigirem às coisas,
roubando os gregos e o vento
vindo de longe,
cada noite enchemos um copo
entre os restos desse enorme navio
que se negou e assim cumpriu
a mais estranha viagem,
uma que outra onda ainda
nos revira sacode
e o mar obriga-nos
a beber esse gole glacial
enquanto juntos levantamos a rede
num mudo entendimento diante
da vida e desse sol macio
que mal nos chega agora
no esforço de ler a última linha.
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