terça-feira, abril 30, 2013


Ao pôr do sol todas as cidades são maravilhosas, mas algumas são-no mais do que outras. Os relevos fazem-se mais brandos, as colunas mais redondas, os capitéis mais encaracolados, as cornijas mais resolutas, as flechas das torres mais nítidas, os nichos mais fundos, os discípulos mais bem togados, mais aéreos os anjos. Escurece nas ruas, mas continua a ser dia na Fondamenta e nesse gigantesco espelho líquido onde os barcos a motor, os vaporetti, as gôndolas, os batéis e as barcaças «como sapatos velhos em desordem» pisam diligentemente fachadas góticas e barrocas, não poupando também o nosso reflexo nem o da nuvem que passa. «Pinta», segreda-nos a luz de Inverno, detida no seu curso pela parede de tijolo de um hospital ou chegando ao destino, o paraíso do frontone de San Zaccaria, depois da sua longa travessia através do cosmos. E sentimos a fadiga dessa luz, que fica ainda a repousar, durante pouco mais de uma hora, nas conchas de mármore de San Zaccaria, enquanto a Terra oferece a sua outra face à luminária. Esta é a luz de Inverno no auge da sua pureza. Não traz consigo calor nem energia, tendo-os deixado pelo caminho algures no universo, ou nos cúmulos mais próximos. A única ambição das suas partículas é alcançar um objecto e, grande ou pequeno, torná-lo visível. É uma luz íntima, a luz de Giorgione ou Bellini, e não a de Tiepolo ou Tintoretto. E a cidade demora-se nela, saboreando o seu afago, a carícia do infinito de onde veio a luz. Um objecto é, afinal, aquilo que torna íntimo o infinito.


- Joseph Brodsky
(tradução de Ana Luísa Faria)
in Marca de água, Dom Quixote

segunda-feira, abril 29, 2013



Há um cofre aberto que alguém se esqueceu de fechar, deixado ao desabrigo de uma casa sem telhas, apoiado sob duas traves de madeira; uma cadeira deitada, espreitando através da janela sem vidro os fins de tarde em que gente como nós vem indagar aos mortos sobre o destino dos vivos; prateleiras de cozinha amontoadas no interior dos armários escavados no granito; barrigas desertas que pedem a quem por elas passa: a fome da fome, pedindo vida à gente, e a gente sem nada nos bolsos para além de cigarros e três ou quatro nomes de antepassados mortos há mais de duzentos anos.

Junto aos olhos, uma delas traz ainda a gaiola e o complexo mundo de um pássaro preso a um labirinto de rede que lhe recorta o espaço em quadrículas de vento. Na ausência de um par de asas, serve de leiteira à chuva e às folhas que lhe caem no colo, colo de casa cantante a quem o silêncio confirma a impossibilidade de haver quem alimente fantasmas de pássaros à janela de um quarto só de cabeceira de cama, encostada aos nervos de uma trepadeira que amortalha os risos de quem ali foi menina.

Adiante ainda, partes de laranjas tingidas de tristeza em campo aberto, por onde os meus pés passam, sem que haja neles a culpa dos corpos pequenos que o meu peso enterra no chão; ao chegar, cinquenta anos depois do incêndio, a um chão colhido de lilases, pedras deixadas ao musgo e azulejos partidos, uma sinfonia de salas vazias, heras e altares onde a fé chegou para o apocalipse de uma única família em menos de uma hora de pródigas chamas. Aparato nunca antes concebido pela escadaria de pedra que verte os dissabores da fé sobre um quintal de cerejeiras, a quem corvos fazem frente pelo domínio sobre a cor; sem que de luto se tinja o que aqui chegou: uma história inventada e o melhor dos cenários que Tarkvosky jamais imaginou.

Sobre um dos quartos, oculto sob a sombra marítima de uma árvore, confinada à travessia das portas e janelas, um corpo de ferro abre-se ao céu, indiferente ao povoamento de pétalas azuis que lhe cobrem a boca, esperando por lume, um pouco mais de mãos que lhe cozinhem, sobre o rosto, a hora certa das refeições diárias. Enquanto o equilibrismo mudo das pedras armadilha este espaço de estranhos entre estranhos, acotovelando-se por um pouco mais de lilás, que lhes chegaria para este imenso desejo de beleza.

- Beatriz Hierro Lopes

domingo, abril 28, 2013


(ich bin eine Wasserstunde)

Fear death by water

The Waste Land - T. S. Eliot


Esquece os devaneios do príncipe. Por um momento,
vamos falar de campas, de vermes e de epitáfios.
Vamos falar sobre como entrámos no terraço
depois de um século em abandono
e sobre como estas estações são um só lamento.
Vamos contar a história de homens perseguidos pelas silhuetas
dos espectros que depuseram, uns adulterados, outros degolados,
todos detentores de pouco mais que barro e morte.
Vamos reconhecer que dentro do corpo oco
que nos cinge tem a loucura a sua corte,
como uma delicada mão que cava no fundo do céu
o nosso apetite do instante.
Palavras de outono sem versos, duas vezes mortos
e arrancados pela raiz, como os nossos olhos
que da sua altura se desmoronam.

A indiferença tornou-se cliente de taberna
onde dois Judas, tantas vezes piores que Judas,
planeiam diligentemente a nossa fortuna,
como se não acreditassem que só os vermes
hão-de provar as suas tão fracas qualidades.

É este o nosso tempo, em que unhas frágeis
logram rasgar atalhos nas palavras
e assim nos deixamos perder em qualquer hora,
praticando os excessos desta brutalidade quadrúpede
que concede, acima de tudo, uma morte pela água.

Esta língua é um lugar perfeito e, por isso,
inóspito. É como um cemitério,
há séculos que andamos a caminhar descalços sobre corpos.

- David Teles Pereira
in Lobos, Língua Morta

Artful coexistence


Digo isto aqui e agora para poupar o leitor a uma desilusão. Não sou um homem moral (embora tente manter a minha consciência em equilíbrio) nem um sábio; não sou nem um esteta nem um filósofo. Sou apenas um homem nervoso, por força das circunstâncias e dos meus próprios actos; mas sou observador. Como uma vez disse o meu querido Akutagawa Ryunosuke, eu não tenho princípios; só tenho nervos. Aquilo que se segue, por conseguinte, tem mais que ver com o olhar do que com as convicções, incluindo as respeitantes ao modo de organizar uma narrativa. O olhar precede a pena, e decidi não permitir que a minha pena minta sobre a sua posição. Se corri o risco de uma acusação de blasfémia, não é a de superficialidade que me fará estremecer. As superfícies – aquilo que o olhar regista primeiro – são muitas vezes mais reveladoras do que o seu conteúdo, por definição provisório, salvo, é claro, na vida depois da morte.

- Joseph Brodsky
(tradução de Ana Luísa Faria)
in Marca de água, Dom Quixote

NO (2012)




7/10

sábado, abril 27, 2013

Vasco Gato

 


A FÁBRICA


                                         Como um enxame,
o zumbido dos televisores. Será assim
a noite inteira.
                     A luz difundida por esses ecrãs,
                                                      se somada,
daria para derreter milhares de corpos.
Mas este é o pior dos holocaustos:
sem grilhões,
           sem divisas,
           sem valas comuns.
Apenas o leito quotidiano. E retinas
para sempre escancaradas
na hipnose do merecido descanso.
                                              Os bairros
amontoam-se como plaquetas.
Os candeeiros poupam
                           a opacidade da insónia,
                                           oferecendo
um tecto onde abrigar olhos
injectados pela limalha das jornadas cumpridas.
                                             Serão em breve
necessárias gruas para levantar esses corpos,
                       prostrados no sal
do próprio suor. Serão em breve
                                           necessárias
electrocussões capazes de restabelecer
                                                       a biologia.
O transe dos mortos,
                          reabilitando-os,
                          iludindo-os de vida.
Transeuntes da decadência,
soterrados sob
            camadas e camadas
                         de detritos verbais.
                         Eis uma religião
despojada da sua liturgia:
                                     não há ascensão,
é-vos concedida
               a todo o momento
a comunhão com a fonte da vida.
É essa a única dádiva,
                          morrer
                          e tornar a morrer.


in A Fábrica, Língua Morta

The Hunter (2011)





























8/10

sexta-feira, abril 26, 2013


HÁ FESTA NA LIVRARIA

Quanto ao livro, parece que não vai haver a Feira dele no Porto. Esta frase é quase desconexa e bastante arrevesada porque enxerta um título de Mallarmé numa notícia recente dos jornais. E poderia prosseguir com uma paráfrase mallarmeana, dizendo que, segundo as regras da edição, da distribuição e da comercialização dominantes (e pouco existe o que não cabe nesta generalização), os livros são feitos para resultarem numa feira, e não é por ela não ser montada nas barracas da Avenida dos Aliados que se registará a sua falta de comparência. De Norte a Sul do país, na pequena faixa litoral por onde ainda circulam livros e pessoas, o estado de feira não conhece tréguas, a festa é todos os dias e os saldos são permanentes: nas cadeias de livrarias, nas estações de metro, em lugares de passagem. Quem é que ainda se lembra de que existe uma lei chamada do "preço fixo", aplicável aos livros nos seus primeiros dezoito meses de vida?
A lei presumia uma vida longa para os livros, mas estes entraram em ritmo acelerado e vida curta, e a lei foi revogada pelo hábito e pela condição pragmática: o que o legislador classifica como livros "novos", a lei do mercado decreta como velharias que não valem o espaço que ocupam e são expulsas em alta rotação. Chorar por uma Feira do Livro que não terá lugar é um gesto cândido de quem não deu pelo facto de que há feiras por todo o lado e todo o ano, e pensa que esse acontecimento – tão sensível aos fenómenos meteorológicos como uma flor de estufa: não floresce com demasiado calor e perece com a chuva – anuncia a Primavera da Cultura, cujos produtos são postos ao alcance de toda a gente. Felizes os crentes desta religião civil do livro, a quem é poupado o espectáculo ora pindérico ora de guerra civil, onde os mais brutos conquistaram o território e os mais delicados andam a mato. Esta metáfora da guerra literaliza-se um pouco na própria dimensão dos livros: em Portugal, eles são cada vez maiores, têm uma dimensão demagógica, ameaçadora, para expulsarem a concorrência.
Nas livrarias, parecem tanques de guerra estacionados numa garagem para Smarts; nas bibliotecas pessoais parecem calhamaços reluzentes fabricados em acordo secreto com as estantes da Ikea. Neste domínio, onde se usava repetir que "o livro não é um produto como os outros", não é esse o único castigo auto-infligido pelos "profissionais do sector". Confrontados com a lógica implacável do curto prazo, entraram no jogo e aplicaram-se activamente a encurtá-lo ainda mais; a produzir livros para consumidores ocasionais que, mal lêem o livro, vão imediatamente vendê-lo a uma livraria de segunda mão, o que multiplica enormemente o número de exemplares no mercado. Uma crítica da economia do livro mostraria que grande parte dos produtores contribuíram muito para retirar valor ao seu produto, para degradar a sua mercadoria, destinando-a a uma feira permanente. Aquilo que deveria ser um segundo mercado, o das sobras, é hoje o mercado principal. Os livros circulam por todo o lado – em feiras e entrepostos que dão pelo nome de livrarias – como produtos que sobram. Os que não são produzidos para sobrar, muitas vezes nem chegam a entrar lá. Uns são os excedentes, outros são os supranumerários. Que, perante isto, haja ainda quem não conceba que se possa falar de livros sem ser para proclamar as suas virtudes e a sua utilidade cultural e social, é prova de que há sempre últimos redutos para gente de muita fé.

- António Guerreiro
in Ípsilon (26.04.2013)

COMPARA O CURSO DO SEU AMOR
COM O DE UM REGATO


Torcido, desigual, brando e sonoro,
em segredo resvalas entre as flores,
a corrente furtando dos calores,
de cãs na espuma e fulvo com o ouro.
Repartes em cristais o teu tesouro,
líquido plectro a rústicos amores;
a afinar rouxinóis por tangedores,
tu ris-te por crescer com quanto choro.
De vidro, nas lisonjas divertido,
jovial vais ao monte; despenhado,
espumoso encaneces num gemido.
Não de outro modo o coração chagado
na prisão e no pranto está caído,
distraído, contente, confiado.

- Francisco Quevedo
(tradução de José Bento)
in Antologia Poética, Assírio & Alvim

COM EXEMPLOS MOSTRA A FLORA A BREVIDADE
DA FORMOSURA PARA NÃO A DESPERDIÇAR


A mocidade do ano, a ambiciosa
vergonha do jardim, este encarnado
oloroso rubi, Tiro abreviado,
também do tempo presunção formosa;
a resplendente ostentação da rosa,
deusa do campo, estrela do valado;
a amendoeira, em seu olor nevado,
que antecipar-se ao próprio calor ousa,
são duras repreensões, oh Flora, mudas
da formosura e da soberba vã,
que aos ditames da flor se encontra afecta.
Teus anos passam breves, não te iludas;
de ontem já te arrependes amanhã,
mais tarde e a sofrer serás discreta.

- Francisco Quevedo
(tradução de José Bento)
in Antologia Poética, Assírio & Alvim

quinta-feira, abril 25, 2013

língua morta 040


LOBOS
de David Teles Pereira, Diogo Vaz Pinto e Golgona Anghel
com ilustrações de Patrícia Roque
[250 exemplares, 52pp., 10€]


pedidos:edlinguamorta@gmail.com


Também tenho ido a bares

Ao que parece, a reivindicação da autotelia esmoreceu um pouco em A fábrica. Não deixa contudo de se transparecer do uso de léxico inusitado, da sintaxe por vezes agramatical e da respiração dos poemas, a reivindicação de uma linguagem poética. Para além disso, a poesia de Vasco Gato também engendra imagens insólitas (por exemplo, o poema 2, p. 9), o que a autonomiza, levando, ipso facto, a que o mundo por ela criado por vezes seja bem distinto daquilo que usualmente entendemos como mundo (algo que, nos livros anteriores, terá ocorrido com mais força).
Neste livro, consegue Vasco Gato aliar certa narratividade a algum hermetismo. Como o disse o poeta numa entrevista concedida a Luís Caetano, houve a intenção de que A fábrica fosse mais comunicante de que outros já publicados pelo autor, abrindo-se mais, como mencionado, ao mundo. Talvez o poeta tente cerzir as duas grandes linhas que vêm estruturando a poesia portuguesa moderna e contemporânea, ensaiando uma aventura de linguagem que ao mesmo tempo diga algo do mundo (social, político, cultural) em que vivemos. É um lance arriscado que diz que a mais completa transparência é impossível. Toda poesia vive da metamorfose do que se quer dizer, posto o significado deslize constantemente sob o significante. Como o Lord Chandos de Hofmannsthal, também Vasco Gato duvida da capacidade de as palavras apreenderem totalmente um mundo demasiado esquivo. «A nomeação é a eterna e vã tentativa de conhecer», diz João Barrento, sobre a Carta mencionada. Por seu turno, diz Vasco Gato:

O suborno de que fomos capazes
             apenas nos garantiu
os ossos de um nome caído
              no deserto.

Visa esta poesia, através de um ritmo que nos empurra por vezes a golfadas de ar, mimetizar o pulsar rebarbativo do mundo. Mas que não deixa desta forma de atravessar os temas que os poetas do lirismo figurativo mais têm explorado. A perda, desde logo, como a sentida por um cervo aquando da morte da sua cria (p. 23); a consciência de que as coisas falham, de que a mortalidade é uma dádiva, e de como isso é (um)a religião (p. 13), uma esfera separada da mundana sobre a qual se deve elaborar a liturgia (uma administração sábia da melancolia?):

De um lado ao outro da cidade
– nossa por idades convergentes –
        escancarou-se de repente
        a conspiração
de elementos tão díspares
como: a tua demora,
         a minha precipitação,
             uma mesma música
expandindo-se sobre todos os
            motivos alheios. (p. 14)

Mas o livro abre com a seguinte epígrafe: «Proletaires de tous les pays, je n’ai pas de conseils à vous donner», de Louis Scutenaire. Não só assinala ela o perigo que toda a deriva utópica representa, como isola a literatura num campo autónomo. O dispositivo que produz a verdade e alisa subjectividades, subsumindo-as a uma só voz, é a televisão, através do efeito de hipnose. O resultado será uma massa ruminante, amorfa e insensível, após horas de exposição a descargas de energia. A fábrica é a obediência que todos devem a dispositivos técnicos e à televisão em particular. Também, como o holocausto, racional, organizada, sistemática, letal (Zygmunt Bauman considerou que sem a modernidade técnica o holocausto não teria ocorrido da forma que ocorreu). E se, de facto, serão «necessárias / electrocussões capazes de restabelecer / a biologia» (p. 8), então outro dos efeitos da televisão é a impassibilidade, a absoluta insensibilidade, o transe, isto é, ela gera um efeito zen; a televisão é uma «máquina-buda» (Peter Sloterdijk) que consola – ilusoriamente, diz Vasco Gato – dos males do mundo. «É essa a única dádiva / morrer / e tornar a morrer» (p. 8). Tragicamente, encontram-se sem saída, dificilmente se moverão os que se encontram «soterrados sob / camadas e camadas / de detritos verbais» (p. 8), os que estão encerrados na moldura televisiva. É a palavra, sobretudo a portátil, como dizia Ruy Belo, a provocar esta morte; é o fantasma que ela é, ela que está no lugar da coisa, ela que desvitaliza a substância da existência. Em face disso, do facto de a palavra ser tanto mais sinónimo de morte quanto vise mais ser (equivocamente) comunicativa, é tarefa ética do poeta «a escolha soberana da língua própria, / com sua parte de fogo / e seu emblema de ódio» (p. 30), para que se concretize a «eterna e vã tentativa de conhecer» de que falava João Barrento.

  - Pedro Meneses 

quarta-feira, abril 24, 2013

LOBOS


com ilustrações de
PATRÍCIA ROQUE

 

O tango


Onde estarão? Pergunta a elegia
Sobre os que já não são, como se houvesse
Uma região onde o Ontem pudesse
Ser o Hoje, o Ainda, o Todavia.

Onde estará (repito) esse selvagem
Que ergueu, em tortuosas azinhagas
De terra ou em perdidas plagas,
A seita do punhal e da coragem?

Onde estarão aqueles que passaram,
Deixando à epopeia um episódio,
Uma fábula ao tempo, e que sem ódio,
Lucro ou paixão de amor se esfaquearam?

Procuro-os na lenda, na apagada
Brasa que, como uma indecisa rosa,
Conserva dessa chusma valorosa
De Corrales e Balvanera um nada.

Que escuras azinhagas ou que ermo
Do outro mundo habitará a dura
Sombra daquele que era sombra escura,
Muranã, essa faca de Palermo?

E esse Iberra (tenham dele piedade
Os santos) que na ponte duma via,
Matou o irmão, Ñato, que devia
Mais mortes que ele, ficando em igualdade?

Uma mitologia de punhais
No esquecimento aos poucos se desgasta.
E dispersou-se uma canção de gesta
Em sórdidas notícias policiais.

Há outra brasa, outra candente rosa
Dos seus restos totais conservadores;
Aí estão os soberbos matadores
E o peso da adaga silenciosa.

Embora a adaga hostil ou essa adaga,
O tempo, os dispersassem pelos lodos,
Hoje, p’ra além do tempo e da aziaga
Morte, no tango vivem eles todos.

Na música prosseguem, na mensagem
Das cordas da viola trabalhosa,
Que tece na toada venturosa
A festa, a inocência da coragem.

Vejo a roda amarela circular
Com leões e cavalos, oiço o eco
Desses tangos de Arolas e de Greco
Que vi bailar no meio da vereda,

Num instante que emerge hoje isolado,
Sem antes nem depois, contra o olvido,
E que tem o sabor do que, perdido,
Perdido está mas foi recuperado.

Os acordes conservam velhas cousas:
Ou a parreira ou o pátio ancestral.
(E por trás das paredes receosas
O Sul tem uma viola, um punhal.)

O tango, essa rajada, diabrura,
Os trabalhosos anos desafia;
Feito de pó e tempo, o homem dura
Menos que a leviana melodia,

Que é tempo somente. O tango cria
Um passado irreal, real embora.
Recordação que não pôde ir-se embora
Morta na luta, algures na periferia.

- Jorge Luis Borges
(tradução de Ruy Belo)

terça-feira, abril 23, 2013


O mundo está coberto de neve agora. Não estou em casa.
Como são alvos estes lençóis. As faces não têm expressão.
São atrevidas e insuportáveis como as faces dos meus filhos,
Esses pequenos irritantes que me escapam dos braços.
As outras crianças não me tocam: são terríveis.
Têm demasiada cor, demasiada vida. Não ficam quietas,
Quietas como este vazio que carrego dentro de mim.

Tive várias oportunidades. Tentei vezes sem conta.
Cosi a vida dentro de mim como um órgão precioso,
E caminhei precária e cautelosamente como se fosse etérea.
Tentei não pensar demais. Tentei ser natural.
Tentei ser cega no amor, como outras mulheres,
Cega na minha cama, com o meu cego amante,
Sem procurar, na espessa escuridão, a outra face.

Não a procurei. Mas ela estava aí,
A face do que não tinha nascido e amava as suas perfeições,
A face do que jazia morto e que só encontraria a perfeição
Na sua tranquila paz, só assim se manteria sagrado.
E havia também outras faces. As faces das nações,
Dos governos, parlamentos, sociedades,
Os rostos sem vida dos homens importantes.

São estes os homens que não suporto:
Têm tanta inveja de tudo aquilo que não é raso! São deuses invejosos
Que gostariam que o mundo inteiro fosse raso, porque eles o são.
Vejo o Pai a conversar com o Filho.
Tal displicência não pode senão ser sagrada.
«Vamos fazer um céu», dizem.
«Vamos arrasar tudo e sacudir a espessura destas almas».

- Sylvia Plath
(tradução de Ana Gabriela Macedo)
in Três mulheres, Relógio D'Água

Faltam 3 dias para a lua cheia



O poema é ascensão furiosa; a poesia, o jogo de áridas ribanceiras.

---

A fonte é rochedo e a língua é trincheira.

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Palavra, tempestade, gelo e sangue acabarão por formar uma geada comum.
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Se por vezes o homem não fechasse soberanamente os olhos, acabaria por não ver aquilo que vale a pena ser olhado.
--- 
Encher de Sol a imaginação daqueles que gaguejam em vez de falarem, que coram no momento de afirmar. Assim são os firmes «partisans».
--- 
A nossa herança não é precedida de nenhum testamento.
--- 
Apenas nos batemos valorosamente pelas causas por nós próprios modeladas e com as quais ardemos ao identificar-nos com elas.

- René Char
(tradução de Margarida Vale de Gato)
in Furor e Mistério, Relógio d'Água

segunda-feira, abril 22, 2013


sem budismo


Poema que é bom
acaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.
Começa sem.
Com, digamos, certo verso,
veneno de letra,
bolero. Ou menos.
Tira daqui, bota dali,
um lugar, não caminho.
Prossegue de si.
Seguro morreu de velho,
e sozinho.


- Paulo Leminski
in Toda Poesia, Companhia das Letras


Samba-canção

Tantos poemas que perdi,
Tantos que ouvi, de graça
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...
 
- Ana Cristina Cesar

Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.

- Ana Cristina Cesar

sábado, abril 20, 2013

A Voice


They mutilate they torment each other
with silences with words
as if they had another
life to live

they do so
as if they had forgotten
that their bodies
are inclined to death
that the insides of men
easily break down

ruthless with each other
they are weaker
than plants and animals
they can be killed by a word
by a smile by a look

- Tadeusz Rozewicz

bem no fundo


No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olha pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.


- Paulo Leminski
in Toda Poesia, Companhia das Letras

sexta-feira, abril 19, 2013

Proofs


Death will not correct
a single line of verse
she is no proof-reader
she is no sympathetic
lady editor

a bad metaphor is immortal

a shoddy poet who has died
is a shoddy dead poet

a bore bores after death
a fool keeps up his foolish chatter
from beyond the grave

- Tadeusz Rozewicz



Entre a aurora e a noite está a história
universal.

Jorge Luis Borges

É inútil que durmas se já não achas
no sono esse lado para onde te viras
quando a ausência suspira,
e procuras assim no próprio sangue
algum corpo doce e clandestino
que te ampare a cabeça. Ficou-te presa
a coroa, e pesa terrivelmente. Solta
um bando de ideias que em quaisquer
ruídos se afiam e, já baloiçado de
desmesura
, desces o estore e deixas
a claridade fazer as limpezas.

O amanhecer rompe com os seus ritos
impiedosos como formigas sobre um
grilo inerte
. Com a barba, o rosto
inteiro por fazer, trazes já semanas
sem cortar a vista no espelho. Levantas
as roupas mudas do chão e tomas balanço
antes de caíres no vento. Uma espécie
de fé, essa cabeça baixa de quem faz
seu um destino qualquer, leva fundo
as mãos nos bolsos e acha dons.
Como essa frieza terna quando as ruas
te cansaram já e achas certa graça
só de encher os olhos de gente,
apalpar-lhes de leve as intimidades.

Pontual como os desesperados, entras
na pequena e miserável capela atulhada
de santos em cacos e ilustrações beatas
que, de sucessivos restauros, saíram
com bigodinhos hitlerianos e uns bons
cornos. Os anjos, já desmoralizados,
catam piolhos uns aos outros aos pés
do altar onde as aranhas conduzem
os seus sacrifícios. Fazes o sinal
da cruz e segues com estranhos gestos
inventados, acendes um cigarro e
ajoelhas entre as cinzas, comovido,
ainda sem teres motivo. A luz
entra também cheia de cuidados, pisa
mil articulações de sombra e, aos poucos,
desprende uma recordação, vendo-a
desabrochar e morrer vezes sem conta.

Nas praças, nos largos, nos parques onde
a flauta do pássaro azulado anuncia
frágeis recaídas
, as crianças ladram
aos cães, mordem turistas e com a ajuda
de uma pedra causam desastres magníficos.
Correm e escondem-se, lavam as mãos
com cuspo e só muitos anos
mais tarde escutam a balada do remorso
quando, certa tarde, a cadência da chuva
rapta o embale do sangue  e lhes
enche os rastros ébrios entre ruelas
ofegantes. Esse ar dos tristes sacanas
alinhados, como presos, indo pela berma
dos antigos caminhos. Uma banda de
sopro, lábios melodiosos nesse ritmo
coxo que vê a noite arredondar a saia.

No pequeno quartel que tem hasteada
a bandeira do vício, um balcão
altíssimo condena-vos a ficar de pé.
Tiras um número e entras de manso
na conversa bêbeda das velhas gárgulas.
O peso de um céu inútil resvala enfim
desses ombros cansados para as mãos,
e cada gesto que se segue tem a doçura
de uma admirável insubordinação.

desencontrários


Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.


- Paulo Leminski
in Toda Poesia, Companhia das Letras

Pump up the volume (1990)

quinta-feira, abril 18, 2013

LOBOS



 Abril de 2013

Enquanto ele fala sobre um furacão e a força repentina que é nascer
eu ouço. Ao seu lado o tempo, penso, passa em mim
como uma poça de água parada
por onde atravessou um caminhão.

Não sei pra onde
dizem vão
essas placas abandonadas
nem porque elas ficam assim
penduradas.

Ninguém salva ninguém de si mesmo
brinca de farol, no máximo
neon das estrelas do coração.

Ele abre a janela e sorri
como o vento mostra os dentes do cavalo.
Não olha assim, amor,
depende tanto tudo, não esquece.

- Júlia de Carvalho Hansen
in alforria blues ou Poemas do Destino do mar, chão da feira

Quem fundou esta cidade
foi fundo o suficiente?
Quem veio por aqui primeiro
será que eram dois ou vinte ou duzentos
estavam armados
com mais fome do que fé?
Calcularam pelos astros
Ou vinham tranquilos
gestantes do acaso
nem se noticiaram a notícia da nova povoação
foram percebendo aos séculos que ficavam, dias
após
que a cada noite dormiam
todo solo tem um ímã que nos puxa ou repele
Ou a cada noite dormiam mais tarde
de tão próximos uns dos outros que estavam
começavam a se identificar uns com os outros
até que de outros viraram os mesmos
um povo, uma língua, uma situação,
porque tinham tanta noite por fazer e por falar
Que brigavam
por honra e tédio,
nasceu a cidade.

(...)

- Júlia de Carvalho Hansen
in alforria blues ou Poemas do Destino do mar, chão da feira

quarta-feira, abril 17, 2013


Muito poderia dizer-se, é certo,
da sempre excessiva distância
que separa a galinha do seu voo:
sinto-me, nos dias de colheita,
como um rapsodo estéril
que, de repente, vomita um ovo.
Mas talvez seja em vão fazê-lo agora,
quando da rima ficam apenas escombros.
Onde havia medo, disciplina e poder,
temos descanso, “cultura” e diversão.
Os tropos caem como figos secos no esterno oco dum soneto:
aqui apenas as hienas e o vento aparecem ainda para afiar a língua.

Somos o eco leigo de um trambolhão a imitar um ditirambo.
Já derreteram flautas e sonhos para alimentar a lavra de canhões.
Os sátiros foram buscar febras e tabaco.
Dizem que a Lolita cumpriu, há pouco, trinta anos.
O paraíso, já sabemos, tem as suas contas em dia.
Alguém devia, no entanto,
especializar-se em originais e outras classes de infernos.
Este miúdo, talvez, que nos ensina,
calado e confiante,
com a ponta de uma tíbia de frango,
na gordura que sobrou no prato,
o contorno de uma chucha.

- Golgona Anghel  
(inédito do próximo livro, a sair em Maio na Assírio & Alvim)

terça-feira, abril 16, 2013

Roncesvalles

Definitivamente,
parece confirmar-se que o inverno
que vem será bem duro.

Jaime Gil de Biedma

O frio dos Pirenéus e o aroma a traição
fazem-me regressar ao toque das tuas mãos.
Aqui, onde um soldado desfeito desfere
golpes secos no vazio do anoitecer,
o teu corpo já não existe,
apenas os efeitos dele, a branca humidade
dos olhos no ponto quieto do mundo.

Enquanto te vestiam, o sol depositou
um raio directo onde o pó cintilante
voava sobre o fato azul de todos os domingos.
Sempre me ensinaste as lições mais difíceis,
nunca limpar os joelhos depois da queda
ir ao encontro da dor com o cabelo negro dos carrascos.

Faltava apenas esta, a perfeita traição,
deixar que sejam os mortos a sepultar os vivos.

- David Teles Pereira
in Deitar a língua de fora, Língua Morta

Todas as manhãs


Todas as manhãs
são violentas –
descarregam luzes
peixes
lonas em barracas de feira:
atravessam
pupilas
com força –
brilho de faca
descosturando rastros
daquele sonho
morte imaginária
meteoros de vida
que circulavam repletos
com a brevidade
de todas
as manhãs do mundo

- Heitor Ferraz Mello
in Resumo do Dia

The Company You Keep (2012)





























7/10

segunda-feira, abril 15, 2013

SOBRE POESIA CONTEMPORÂNEA: UM ENSAIO ESSENCIAL


Do meu ponto de vista como leitor e crítico, esta é a tarefa premente da contemporaneidade brasileira: enfrentar o consenso, que se torna mais forte na medida mesma em que a tradição deixa de ser a alteridade que nos pressiona desde o passado e não funciona mais como substrato comum de referências e expectativas entre o leitor e o autor. Consenso esse que faz hoje da tradição algo inócuo, que apenas fornece material para glosa e piada, ou algo sagrado (e perdido), só recuperável pela celebração ritual – e que promove a negatividade facilitadora, que recusa no final das contas o confronto com as contradições do presente e a pujança de outras formas de produzir emoção e ideias (como a música, o cinema, o romance, entre outras), refugiando-se numa afirmação da distância que não consegue disfarçar a impotência.
 

Quando não cante mais


Quando não cante mais adivinharei
o esconderijo de um barco que terá
conseguido atravessar o oceano
emaranhado demais na noite

Serei a minha própria ilha um vestígio
de terra infecunda um coração
jamais arrependido porém sozinho
sempre sozinho recordando o mar


- Carlos Edmundo de Ory
in Música de Lobo, Galaxia Gutenberg

Concentração directa


Como dormir se este poema me desenha
no papel tranquilo silenciário
E mesmo assim no papel encontra alpista
não açúcar como os cavalos
Este poema nasce pelos pés
ainda que caia de cabeça meu milagre
Um poema dá-me à vida

Tanto poemas como desenhos
o que importa é gastar novos minutos
Escrevo com a minha harpa e pinto com
os meus dedinhos coloridos
Mancho meu coração aqui sozinho
Sozinho e mudo percorro o meu sonho
com meu olhar de garoto na planície
de neve com minha mão maníaca

Na cama escrevo desenhos
embriagado de Kandinski certamente
também de vinho vou embriagado
na minha noite de anonimato
Pinto na noite descomunal
tudo vértebras tudo serpentes

- Carlos Edmundo de Ory
in Música de Lobo, Galaxia Gutenberg

domingo, abril 14, 2013

Um marciano manda um postal para casa


Caxtons são pássaros mecânicos de muitas asas
E alguns são muito apreciados pela coloração -

fazem os olhos derreter-se
ou o corpo gemer de dor.

Nunca vi nenhum voar, mas
às vezes pousam na mão.

Névoa é quando o céu está cansado de voar
e descansa no chão a máquina macia:

então fica o mundo baço e livresco,
como gravuras sob papel de seda.

A chuva é quando a terra é televisão.
Tem a propriedade de tornar as coisas mais escuras.

O Modelo T é um quarto com a fechadura dentro -
dá-se a volta à chave e o mundo fica livre

para o movimento, tão veloz que há um filme
para ver tudo o que passou despercebido.

Mas o tempo está atado ao pulso
ou guardado numa caixa, fazendo um tiquetaque de impaciência.

Em lares, dorme um utensílio assombrado
que ressona quando alguém lhe pega.

Se o fantasma chora, levam-no
aos lábios e sossegam-no com sons

até dormir de novo. E no entanto acordam-no
de propósito, fazendo-lhe cócegas com um dedo.

Só às crianças se permite que sofram
em público. Os adultos vão para um quarto de castigo

com água, mas sem nada de comer.
Fecham a porta à chave e sofrem sozinhos

os barulhos. Ninguém está dispensado,
e a dor de cada um tem um cheiro diferente.

À noite, quando as cores todas morrem,
escondem-se aos pares

e lêem acerca de si próprios
A cores, de pálpebras cerradas.

- Craig Raine
(tradução de João Ferreira Duarte)
in Leituras de poemas do inglês, Relógio d´Água
retirado daqui

Ao Fialho

Um resto de restos, babando mágoas
de intrigas em roda da ruína de si mesmo,
como um vento estúpido, sem história
nem destino, rondando às portas inúteis
onde bate a medo e ouve o medo bater.
Recolhe asas de moscas mortas e anuncia
as velhas desgraças às velas dos moinhos
destroçados que vai movendo. Não conserta
nada nem deserta, apenas fica de volta
como uma voz sem língua nem dentes.
Faz das frestas a sua torpe garganta, e,
sem música nem sangue, é apenas um
músculo daninho, servindo-se dos muros
vizinhos para se elevar. Sem corpo ou
caminho, não passa de um túmulo no ar.

adminimistério



Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objecto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?

Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?


- Paulo Leminski
in Toda Poesia, Companhia das Letras

as coisas


A bengala, as moedas, o chaveiro
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, o baralho e o tabuleiro,
Um livro e entre as suas folhas a esvaecida
Violeta, monumento de uma tarde
Memorável, decerto, e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais e atlas, taças, cravos,
Servem-nos como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Nós já esquecidos, e durarão mais;
Sem nem saber que partimos, jamais.

- Jorge Luis Borges
(tradução de Josely Vianna Baptista)
in Poesia, Companhia das Letras

sábado, abril 13, 2013

sexta-feira, abril 12, 2013




A TEORIA DAS CATÁSTROFES

Naquele tempo, que agora nos parece tão frívolo, há precisamente trinta anos, Jean Baudrillard, um génio da alegoria com alcance conceptual, desenvolveu a sua noção de obscenidade (“a obscenidade começa (...) quando tudo se torna de uma transparência e de uma visibilidade imediata, quando tudo é submetido à luz crua e inexorável da informação e da comunicação”), rematando com a cena lacónica de um homem que, em plena orgia, murmura ao ouvido de uma mulher: “ What are you doing after the orgy?”. A orgia total - do sexual, do político, do cultural, do racional, da crítica – tornara-se entediante e provocava uma enorme impaciência. Daí a pergunta, ainda que murmurada, acerca do “depois”. Quando tudo se começa a exorcizar no seu excesso orgíaco e se dá uma desregulação por hipertelia, isto é, quando as coisas já estão para além dos seus próprios fins e se anulam por saturação, Baudrillard, perspicaz, percebeu que o crescimento era, afinal, sinónimo de excrecência. Todos os sistemas, e em primeiro lugar o sistema financeiro, davam sinais de ter chegado a um estado de obesidade, de “gravidez diabólica”, como disse Susan Sontag do cancro. Baudrillard, que transcreveu com grande inteligência e sensibilidade esta música silenciosa, preferiu sempre pensar as transformações contemporâneas em termos de catástrofe e não de crise. Ele sabia que a realidade só pode ser compreendida a partir dos seus extremos, e que a chamada crise só serve para ocultá-la. É hoje evidente que a palavra “crise”, à qual se retirou toda a dimensão de conceito, se tornou um empecilho para percebermos o que se passa. A ideia de crise supõe um disfuncionamento do sistema, mas em que há a perspectiva de uma solução para o superar. Finda a crise, tudo volta à anterior normalidade. Deixamos, porém, de poder falar em crise e devemos começar a falar em catástrofe quando o sistema se ultrapassa a si mesmo e já não encontra nenhuma solução para voltar a funcionar. A crise explica-se por uma cadeia lógica de causas; a catástrofe dá-se quando já não existe relação lógica, directa e proporcional entre as causas e os efeitos. A catástrofe , bem o sabemos, provoca muito medo, já que se refere habitualmente a algo demasiado grande, devastador e incontrolável. Mas novos horizontes se abririam se ela fosse integrada no vocabulário político, tal como foi integrada na Matemática por René Thom, o autor da teoria das catástrofes, que elaborou um modelo para a análise das transições bruscas, das descontinuidades e das súbitas mudanças qualitativas. Assim, em vez de sermos incitados, pela “catástrofe”, a começar algo de novo, continuamos, pela “crise”, estupidamente imobilizados a olhar para o que nos é imposto como “horizonte inultrapassável do nosso tempo” (foi assim que Sartre designou o comunismo). Se, como já foi reconhecido, é nalgumas obras literárias e filosóficas da segunda e da terceira décadas do século passado que encontramos ainda a chave da condição “espiritual” (usando uma palavra muito típica de então) da época em que vivemos, é porque elas foram escritas por quem soube integrar a catástrofe no seu pensamento ou, até, adoptar um modo de pensar por catástrofes, típico de um ambiente com um tão alto teor de actividade intelectual que era possível conceber uma “barbárie positiva”. É claro que precisamos da catástrofe e que andamos a perder tempo com a música pimba da crise. 

- António Guerreiro
in Ípsilon (12.04.2013)

A cicatriz


De repente
era uma curva
de rua
uma noite
cheia de interrogações
como tantas outras
– escorpião
era a cicatriz
no céu
Não sei se era dor
ou simples contentamento
de quem caminha
e topa
com a constelação
a mesma que rege
a data
de nascimento
A cicatriz
de quem se agacha
para lavar os pés
na bacia velha de alumínio
e depara
com a marca do tempo
e um punhado
de estrelas

- Heitor Ferraz Mello
in Hoje Como Ontem Ao Meio-Dia

nunca quis ser
freguês distinto
pedindo isso e aquilo
vinho tinto
obrigado
hasta la vista

queria entrar
com os dois pés
no peito dos porteiros
dizendo pro espelho
– cala a boca
e pro relógio
– abaixo os ponteiros


- Paulo Leminski
in Toda Poesia, Companhia das Letras

quinta-feira, abril 11, 2013

Entretanto

(em correspondência com Erik-Axel Karlfeldt)


Passam raparigas à minha beira,
seios e ancas aureolados d'azul,
olhares provocadores e chapéus de flores,
e chamam por mim com gritinhos, sorrisos e risos.

Então, sinto-me quase jovem renascido:
o desejo levanta vôo..., mas as minhas asas pesam toneladas.
O violina da Primavera jaz, por terra, partido.


- António Barahona
in As Grandes Ondas, Averno

Tânger


Tânger há mais de quarenta anos
No sótão do hotel, o dealer de kif
Eu e Amina a fumar no saco-cama
As crianças em côro na madrassah
Frente à mesquita, uma ampla esplanada
E nuvens de chá verde e d'hortelã pimenta

Paraíso-mini, fogareiro a petróleo,
um braçado de livros, um cachimbo de pedra-
-sabão e grande solidão em júbilo!


- António Barahona
in As Grandes Ondas, Averno

Guerras de gosto


Folheando revistas como Ler, ou seguindo polémicas como a que contrapõe Eugénio Lisboa a Fernando Venâncio nas páginas do JL, ficamos à vezes com a sensação de que as «guerras de gosto» se mantêm ainda vivas: quantas vezes não gastamos o melhor do nosso latim a tentar demonstrar que se alguém elogia o autor A faria melhor em elogiar o autor B, que tem sido, para utilizarmos a forma consagrada e mesmo extenuada, «injustamente esquecido». Acontece que ninguém pode ter a pretensão de escrever sobre todos os livros, como se estivesse no lugar justiceiro de um Deus absoluto. Quem escreve nos jornais tem «os seus autores» e faz o possível por convencer os outros, utilizando os meios retóricos de que dispõe, de que esses autores merecem um esforço de leitura. Quem acha que outros são injustamente esquecidos só tem que pegar activamente na pena para os lembrar, e não andar a puxar a aba do parceiro. Evitemos aqueles truques rasteiros de adolescência retardada com que se pretende convencer o auditório, ao sabre e à cotovelada, de que (é apenas um exemplo) «quem não elogia Adília Lopes não é bom chefe de família» ou é tão burguês que receia uns bons palavrões na sopa. Há boas razões para gostar de Adília Lopes, há também boas razões para achar que aquela desmistificação do lirismo sentimental foi chão que deu antiquíssimas uvas – o que não vale a pena é chatearmo-nos uns aos outros por causas tão pífias.

- Eduardo Prado Coelho
 

quarta-feira, abril 10, 2013


eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora
não segura
um olhar que demora

de dentro do meu centro
este poema me olha

*

das coisas
que eu fiz a metro
todos saberão
quantos quilômetros
são

aquelas
em centímetros
sentimentos mínimos
ímpetos infinitos
não?

*

Quem nasce com coração?
Coração tem que ser feito.
Já tenho uma porção
Me infernando o peito.

Com isso ninguém nasça.
Coração é coisa rara,
Coisa que a gente acha
E é melhor encher a cara.

*

o soneto a crônica o acróstico
o medo do esquecimento
o vício de achar tudo ótimo
e esses dias
longos dias feito anos
sim pratico todos
os gêneros provincianos

- Paulo Leminski
in Toda Poesia, Companhia das Letras

An evil fairy bewitching the world



Domingo
Canto dos passarinhos
Doce que dá para pôr no café

*

Gente que mantém
pássaros na gaiola
tem bom coração.
Os pássaros estão a salvo
de qualquer salvação.

*

quem é vivo
aparece sempre
no momento errado
para dizer presente
onde não foi chamado

*

o silêncio
se mete a maltratar
me ditando
abreviaturas de mim
e,
quem sabe,
a mim mesmo me dilatando

*

tem quem se proteja
por trás
de uma barragem
de bons dias
boas tardes
boas noites
assim não tendo
que ver o que está passando

*

O tempo fica
cada vez
mais lento
e eu
lendo
lendo
lendo
vou acabar
virando lenda

- Paulo Leminski
in Toda Poesia, Companhia das Letras

terça-feira, abril 09, 2013


Dois irmãos

 
Duas camas, lado a lado. Na penumbra do anoitecer, obedecendo às exigências da escola, ouvíamos música, ora sonhadora ora melancólica, narrávamos filmes vistos por um só, e ensaiávamos pensar e falar como quem pensa e lê, até que a simplicidade do sono nos resgatasse ao espanto das possibilidades infinitas. Começavam, assim, os meus trabalhos, que não mais pararam e me têm conduzido, sem pousio, entre luzes e trevas.

Ele, há muito, escolheu a imobilidade, as sombras amenas, nunca solares, nunca atras – um frescor, apenas, embalando a pele. Aquele quantum satis em que as penas soçobram sob o rolo da fleuma. Isto é: deixou de pensar ou, melhor dizendo, escolheu deixar de acreditar no pensamento. E, creio, não por convicção mas por conforto.
 
A história é comum e é a história de como se mata uma geração – não tanto a dos próprios, ainda com memória e, portanto, vergonha; quase sempre a seguinte, ignorante da possibilidade alternativa.
 
Cabe-me a mim educar os seus netos.
 
- Miguel Martins

segunda-feira, abril 08, 2013

Unethical category



        Os textos de Miguel Martins, como já o disse Rosa Maria Martelo, são intimistas, concedem-nos uma espécie de apresentação do rosto, próximos de um registo autobiográfico. Tentam tornar representável o que resiste ao apaziguamento da representação (o tema da auto-representação na obra de Miguel Martins mereceria por certo um estudo mais extenso). Nos termos do próprio autor, diria que a escrita não conhece a «paz subsequente», como sucede com o «foder» (texto I de 1 Homem Sozinho, p. 7). Possibilita o acesso a uma «orla de sentido», como referiu Jean-Luc Nancy, que torne um pouco menos doloroso lidar com o que de insondável sejamos. A escrita é o que persiste, apesar de tudo.

        Dos textos de Miguel Martins avulta uma imagem aproximada do «escritor maldito» socialmente desvinculado. Noites sem descanso, atormentadas pela tv, pela presença apenas espacialmente próxima dos vizinhos, pelas lembranças, por uma incerta dor que vai rodando. E por vezes pela escrita, que se solta de um fôlego sem folga, vorazmente, instantaneamente, contando com uma vigilância permissiva da razão (Fôlego sem folga, publicado pela Língua Morta, recorre a um estilo mais solto de que outros livros do autor, sublinhe-se). Nem por isso é erigido um altar à literatura. Sucede que os princípios da arte autónoma são desde logo colocados em causa pelo contrato de leitura proposto, dado que os textos contêm diversos biografemas. Sente-se isso sim um clamor pela vitalidade de que este mundo não raro carece. A mulher, essa, poderá redimir: «bastam, às vezes, um sorriso, um pestanejar, uma palma da mão suada e quente, um pé-balancé, uma respiração arfante, um hálito, o cheiro alagador de uma menstruação que irrompe pela manhã, um mamilo lactante, uma lágrima» (texto II de 1 Homem Sozinho, p. 8). A vida enquanto momentos de rarefacção entrecortados por epifanias, momentos de puro esplendor proporcionados pela mulher, um ser onde a vida abunda, ao contrário do homem. «Foder», note-se, não é copular (demasiado educado, constrangido e por isso pouco livre), nem fornicar (com sombra de pecado), nem fazer amor (linguagem a roçar o técnico, produtivo), muito menos procriar (em que o fim não está em si mesmo). Foder é libertário, como a escolha do lexema o indicia desde logo. No fundo, também os textos de Miguel Martins clamam por um outro mundo, inventam outro mundo mais livre, pleno e intenso, algo que as vanguardas do início do século XX também reivindicaram. Foder é o que está além do mundo simbólico que nos amansa, que nos vai mantendo num estado sonolento e amorfo. Foder, contrariamente, é o real em bruto, a energia vital indomesticada, que acende em êxtase cada momento da existência humana, que é demasiado limitada pela moral, por um conjunto de leis que moderam o desejo humano, por forma a preservar a ordem social (ah, a neurose).

        Aos homens apenas é acessível o prazer momentâneo, não o gozo contínuo. A nossa civilização assenta na actividade útil, na servidão à reprodução ininterrupta de capital e às próteses técnicas de que nos parece difícil ver-nos livres. Somos forçados, no campo do sensível, a reagir imediatamente a uma miríade de estímulos, cada vez mais artificiais. Somos, como o animal, cada vez mais reactivos. Esta civilização assenta no culto do movimento e repudia a contemplação. Contemplar a beleza bem que podia ser o acto mais revolucionário, mais livre, mais humano:

       
        XXI

        Todos os dias, a toda a hora, uma após outra, cruzo-me na rua com mulheres que não conheço e nunca conhecerei. Algumas são lindas, outras atraentes, outras aparentam inteligência ou outra característica mental cativante, outras ainda parecem acumular tudo isso. Se, a cada vez que tal sucede, parasse e as parasse, lhes dissesse o que penso e que indícios me fazem pensá-lo (supondo que estivessem dispostas a ouvir-me), levaria uma eternidade a percorrer um quilómetro. Concluo: a vida, esta vida, apressada e inútil, feita de correrias rumo ao vazio, foi esquiçada ao arrepio da beleza e da sua contemplação. A vida é para os brutos. Para os cegos que, como diz o provérbio, não querem ver. A vida é uma moléstia ininterrupta. Ou, se calhar, viver é outra coisa que não isto, é darmo-nos o tempo de parar na rua para dizer às mulheres por que razão são lindas. (Miguel Martins, 1 Homem sozinho, p. 28)

            - Pedro Meneses

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Side Effects (2013)





























7/10

domingo, abril 07, 2013

Quixote e Sancho, de Portinari


I / Soneto da loucura

A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
torto endireitando, herói de seda e ferro,

E não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá nas alturas.


II/ Sagração

Rocinante
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.

De geolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês e minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.

Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil semblantes
e recolher no peito em sangue
a palma esquiva e rara
que há de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.

A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo, vento que me arrasta.


III / O esguio propósito

Caniço de pesca
fisgando o ar,
gafanhoto montado
em corcel magriz,
espectro de grilo
cingindo loriga,
fio de linha
à brisa torcido,
              relâmpago
              ingênuo
              furor
de solitárias horas indormidas
quando o projeto a noite obscura.

Esporeia
o cavalo,
esporeia
o sem-fim.


XI / Disquisição na insónia

Que é loucura ser cavaleiro andante
                ou segui-lo, como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
                O que, mesmo vendado,
                vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou – que doideira – um louco de juizo.

- Carlos Drummond de Andrade

Saudações romanas


cachos de flores rosa clarinho a crescer sobre campas anãs em latim
e um obelisco com homens de há vários mil anos em serpentina para o céu

algumas paredes todas de heras
uma ponte de pedra sem braços sobre o Tibre
com líquenes e rápidos que lembram as palavras villa di campagna

ruínas com ares condicionados nos andares de cima
e mercados de relíquias reprodutivas - 2 por cinco euros

vicino ao Palatino, um parque eduardo sétimo cheio
de mais uns quantos mortos a despontar da gravilha
e das ondas das ervas. Mas nenhum cão dá por mim

num céu de azul e branco resguardado por nuvens
a condizer com os anéis grisalhos de certos querubins

chiese por toda a parte - nas abóbadas os humanistas
pintores descobriram a visão 3 D
mistérios, simpósios e aparições em
frescos de tintas manuais, antecipam a ilusão mecânica
do cinerama. Maria guardava todas estas coisas
em seu coração; eu sou turista, tenho uma objetiva
de auto-focagem e os rolos não se revelam mais

- Margarida Vale de Gato

Meninos suicidas


Um acabar seco, sem eco,
de papel rasgado
(nem sequer escrito):
assim nos deixaram antes
que pudéssemos decifrá-los,
ao menos, ao menos isso,
já não digo... amá-los.

Assim nos deixaram e se deixaram
ir sem confiar-nos um traço
retorcido ou reto de passagem:
pisando sem pés em chão de fumo,
rindo talvez de sua esbatida
miragem.

Não se feriram no próprio corpo,
mas neste em que sobrevivemos.
Em nosso peito as punhaladas
sem marca – sem sangue – até sem dor
contam que nós é que morremos
e são eles que nos mataram.

- Carlos Drummond de Andrade

sábado, abril 06, 2013



O dever
Do escritor, do poeta
Não é encerrar-se cobardemente num texto
Num livro, numa revista de onde nunca sairá,
Pelo contrário, é vir
Para o exterior
E sacudir,
Atacar
O espírito público.
Ou então para que serve?
E para que nasceu?

- Antonin Artaud

retirado daqui

sexta-feira, abril 05, 2013


A NOVA ORDEM NARRATIVA

Na semana passada, graças a um ex-primeiro ministro que regressou para contar as suas fábulas, com as quais tentou relativizar ou destituir de verosimilhança as fábulas engendradas na sua ausência, até os mais ingénuos perceberam que vivemos sob o domínio do imperialismo narrativo, já há muito tempo identificado pelos investigadores em ciências sociais, que falaram mesmo de um “narrative turn”, de uma viragem narrativa nas técnicas de comunicação, de controle e de poder. Segundo essa vulgata, todos os discursos – político, ideológico ou cultural – devem, para ter sucesso, adoptar uma forma narrativa. O storytelling management tornou-se um instrumento poderoso da mentira de Estado e do controle das opiniões. O jornalismo, a quem deveria caber a denúncia das máquinas narrativas, tornou-se ele próprio narrativo. Quem está familiarizado com o jargão dos profissionais do ramo, sabe que “contar uma história” é a tarefa exigida a qualquer repórter. Jornalista competente é aquele que descobre “boas histórias”. Por isso é que é hoje impossível ler ou ver uma reportagem sobre a pobreza, por exemplo: o que é apresentado ao leitor ou ao espectador é um elenco de pessoas pobres, transformadas em personagens de uma narrativa e fotografadas ou filmadas como exemplares de uma espécie. Na reportagem de televisão, este método foi elevado à caricatura. Esta nova ordem narrativa, ao serviço de uma economia mimética e ficcional, apropria-se do saber e dos desejos dos indivíduos, orienta os fluxos de emoções, exactamente como as técnicas de propaganda da primeira metade do século passado. Ao serviço desta formatação narrativa e da sua difusão está um processo de encenação. Em 1966, Roland Barthes publicou na revista Communications um célebre artigo, Introduction à l’analyse structurale du récit, que se iniciava desta maneira: “Inumeráveis são as narrativas do mundo”. Barthes analisava aí a narrativa como uma das grandes categorias do conhecimento que utilizamos para compreender e ordenar o mundo, mas a sua “narratologia” faculta um saber lúcido – científico, apto a proteger-nos dos cantos da sereia – sobre os arquétipos e processos narrativos. Quase na mesma altura, Althusser resumia a sua concepção do materialismo dizendo que este consistia em “não mais contar histórias” (a si mesmo e aos outros). Quase simultaneamente, o “nouveau roman” mostrava conhecer tão bem as convenções da narrativa que se aplicou a destruí-las. E, a partir dele, qualquer texto literário parecia não ousar contar uma história sem dizer implicitamente: “Eu sou um texto que fabrica uma história e incorporo no meu interior, transmitindo-a ao leitor, a consciência dessa fabricação”. Quando o “narrative turn” também chegou à literatura e uma parte considerável dos romances que inundam hoje as livrarias se aliaram às técnicas de propaganda do storytteling, servindo os mesmos fins, o romancista passou a investir todo o seu talento de storyteller na missão de contar histórias. Daí a preocupação com a técnica de “agarrar” o leitor no início (veja-se o incipit sempre espertalhaço deste tipo de romances), operação que pode ter sucesso com os seguidores acríticos da nova ordem narrativa – nas suas manifestações políticas, jornalísticas, publicitárias e literárias – mas não com os leitores que não querem que ninguém os agarre porque lêem para serem livres.

- António Guerreiro
in Ípsilon (05.04.2013)

quarta-feira, abril 03, 2013



Arquitecto

para o João

Digamos que amanhece, que acordas
desses teus pesadelos cheios de talento
e ao redor da cama
dás com um bando de pássaros mortos
(tão mortos, tão imóveis, tão caídos...).
Os gatos também encolhem os ombros.
A casa é um eco que não acaba. Surda,
tem uma memória espantosa, mas já nada
de novo te aceita. São tantos anos,
gritos e mordeduras, fios de
aranha e baba cristalina
, o reflexo
na bacia entupida, as flechas da infância e
pedras tão fundas. Um relógio caído
a um canto, devorado por formigas,
e as horas fugidas, desmesuradas.
Esse deserto de porcelana, flores imóveis,
tudo petrificado num espelho morto
que dessangra reflexos antigos.
Uma nuvem cobre os espaços a que
a dor se habituou. Lá fora, o vento
já depôs as armas, resta a chuva
e o seu coruscar. O silêncio bebe-a.

Pisando docemente entre os charcos,
segues distraído e das partes infinitas
para os tugúrios onde te enfias
é um tiro. Largas uns trocos sobre esse
peito de vidro e tomas lugar no congresso
de velhos orfeus. Dulcíssima ladainha
em que se fiam encantamentos, as imagens
de outra razão. Sacudindo da roupa
o pó irisado da fábula que nos prende

a estes lugares, cada duas horas alguém
monta o seu burro zonzo e dá
lugar a outro corpo, a outra história.

A esta hora da tarde, ainda no turno
da cerveja, tudo fica tão perto.
E na volta cortas a flor da névoa
que levas para deixar sobre o vestido dela.
Um sol frio bebe leite nos escombros
da velha casa. Com os dedos lês os detalhes
de que a luz cuidou, o gesto sombrio
da sua glória consumida. Outra flecha
perdida entre a tua fragilidade
e o ruído de uma máquina de coser
aqui ao lado, há muito tempo. Absurdo.
Irreal e absurdo.

Digamos que anoitece, e no escuro
a tua lâmpada canta só,
põe ordem ao enredo e o seu círculo
alarga, sussurrante, embriagando
os mosquitos. A máquina em que
te bates, como uma prece
depois de perdida a fé, soa bem alto.
Sobrepões-te ao rumor irado da casa,
e lanças-lhe um urro que põe em sentido
toda a sua arquitectura.



terça-feira, abril 02, 2013

Os passos


Teus passos, pelo silêncio criados
avançam santa, lentamente,
até ao leito da minha impaciente
vigília. Frios, calados.

Queridos, adorados passos mudos
que sem ouvir, minhas ânsias adivinham.
Que deleite celeste se encaminha
até meu leito, nuns pés descalços!

Se para meu sonho obsesso
tua boca fazes avançar,
eu preparo o paladar
para o alimento de um beijo.

Não o apresses, tem calma,
doçura de ser não sendo,
que de esperar vou vivendo
e teus passos são minha alma.

- Paul Valéry
(traduzido da versão espanhola de Carlos R. Dampierre)

segunda-feira, abril 01, 2013


Tenho para mim neste derrotado começo de século
neste farrapo de país em que a própria língua virá em
breve a ser idioma secreto
e a quem ninguém chamará pátria nem tão-pouco
nação, apesar da vigilância sobre a nossa existência
ser matéria autocrática e clerical,

tenho para mim que nesta geografia
a casa rural é a expressão mais pura que sobrevive,
qualquer coisa ao alcance
entre o castelo e a igreja, entre a cruz e o adro,
ornamento que sustenta o carácter da arte e da paisagem.
Expressão do movimento, de uma cor.

Ao fim do pátio, onde a alma da casa termina, está
uma taça de granito. Bebedouro de pássaros nos meses
quentes, cobre-se de medronhos
pelos cálidos dias outonais do verão de São Martinho.
Em oferta, do áspero amarelo ao quente laranja,
no contraste da pedra o meio dia intensifica de brilho

cambiantes vermelhos – rosa vivíssimo e sangue
esmagado – o calor abre em ouro o corpo do fruto,
insectos despertam de um íntimo, longínquo mundo de
treva, como se subissem da mais antiga morte, da mais profunda vida.

- João Miguel Fernandes Jorge
in Mãe-do-Fogo, Relógio d´Água

Caixa dos Silêncios


vejo os que passam em ligeiro contre-plongée, os chinelos e as botas primeiro, depois os sacos da loja dos sinos. nos bonés, nas roupas despontam palavras mágicas que vertem um sumo ácido e monótono, como os cânticos da igreja grega da rua georges bizet. na mesa ao lado, as bocas das raparigas ardem em monólogos de suor e de cama, no regresso das praias africanas. restam as notas que se tomam ao ritmo interno deste verão, composto difuso de sensações, as mais nostálgicas surgindo aos fins de tarde, ao passo dos eslavos que estão tristes e cantam, arrecadam segredos nos sacos de lona, abrem a caixa dos silêncios à lua do desterro. cedo aprendem que entre nós a medida-padrão é o sonho acordado, feito de uivos ensandecidos de sirenes, rubores cerimoniais de crepúsculo e seringas semeando de brilhos a erva rala.

- António Ferreira
 Por Negras Veredas, na Luz dos Caminhos , Quasi

Intendente


a sombra maligna de praga projecta-se no quarteirão arte-nova do intendente, velhas prostitutas apodrecem num vão de escada, atravessaram o tempo estéril em que a história se fez quimera, ao ritmo a que o corpo abdicou da própria luz. as mais jovens estacionam à parte, com olhares que nos desarmam, questionando o horizonte breve: lixo, pedras sem serventia, o deus que talvez haja. à volta, em círculos concêntricos de solidão, as figuras dum mercado de levante numa chusma quotidiana, e mil turvos estímulos: líbido inflamada, cansaço, rotina, nas falsas proporções em que o real nos visita. entro num armazém cheirando a bafio, com manchas de bolor nas paredes, cheio de papéis arrecadados aos montes, lotes condenados à transformação da matéria. sob os nossos pés, os mortos memoram a luz, em vagas palpitações de fósforo que incendeiam o mato rasteiro das memórias que a eles nos unem, por entre as pedras que sobraram do terramoto.

- António Ferreira
 Por Negras Veredas, na Luz dos Caminhos , Quasi