domingo, novembro 02, 2014

Frederico Pedreira sobre «O Sangue das Flores», de Rute Castro (Artefacto)


Texto lido na apresentação do livro


No outro dia, perguntaram-me para que serve a poesia. Eu disse que ela servia para nos livrarmos, nem que por uns segundos valentes, da noção de utilidade. E de noções que lhe são parasitas, como as de transmitir uma mensagem, ou a de que essa mensagem contenha em si um certo grau de razoabilidade. Acho que comunicar alguma coisa é um incidente ocasional no poema. Quando pensamos em linguagem, pensamos em comunicar. Mas a poesia é sobretudo um gesto. Esse gesto pode estar representado na mão que mendiga, na mão que acena, naquela que esmurra, etc. A coloração que se atribui a esse gesto é, para o efeito, indiferente. Falo de coloração no sentido de falar de linguagem, do abc da poesia. O abc da poesia não é feito para comunicar, no sentido em que se comunicam coisas como: “este livro é sobre a guerra-colonial portuguesa”, ou “o PIB aumentou”, ou “este frango está frio”. A poesia não diz propriamente coisas. Ela atribui uma luz especial à ginástica emotiva de quem quer dizer certas coisas. A linguagem na poesia, no contexto da comunicação, é um fundo perdido. O mesmo já não se pode dizer do estalo da língua. Quando tentamos perceber um surdo-mudo, ouvimos grunhidos e esse estalo da língua. O mesmo se passa quando uma pessoa nos fala em modos emocionalmente inflacionados: quando essa pessoa está furiosa ou quando é picada pelo êxtase, ou quando num certo dia acordou tantos degraus abaixo da cama (e portanto de um nível socialmente aceitável de andar por aqui) que só sabe arrastar a boca por mesas de café e descansar a cabeça por onde calha. Para mim, a poesia é o esboço possível destes estados de alerta. Que mensagem se pode esperar de uma pessoa que tem, no momento em que é olhada, o cano de uma arma apontado à cabeça? Ou que informação importante, no mundo das coisas importantes, se pode sacar de uma pessoa que anda aos pulos por ter agarrado um momento a que por decoro os académicos chamam epifania,  mas que é só a excitação de ter agarrado por instantes o eu escorregadio dentro das águas do hábito, e de o ter olhado nos olhos, no sofrimento de se debater fora dessas águas? A poesia também é isto: vermos o peixe moribundo no convés, contorcermo-nos com ele antes de o atirarmos ao mar. É tão sangrento que não o podemos comer. Fazer poemas é descrever os segundos em que olhámos o nosso próprio jogo de contorção. Ninguém pode viver só disto. Já foi tentado, alguns deram um tiro na cabeça, outros afogaram-se, foram atrás do seu peixe. Ninguém pode viver só disto, mas de vez em quando escrevem-se livros. E alguns até são de poesia.

Não me faz grande sentido falar de poesia como quem pergunta no restaurante, de cotovelos apoiados no balcão: o cozido hoje está bom? O livro da Rute tem a propriedade fundamental do que se quer na poesia: desacelerar o tempo, esse tempo balofo que precisa dos certificados de qualidade dos falsos mestres. E é um livro difícil, não propriamente pela linguagem a que dá uso, mas pelo tipo de uso que dá à linguagem. Como na poesia que interessa, a linguagem neste livro está de férias. E digo isto no melhor dos sentidos, que é o de afastar por definição a ideia de utilidade, a ideia de veicular uma mensagem no modo particular da poesia. O poema da Rute não é redondo, o focinho não encontra a cauda, e por isso os olhos do bicho andam desvairados, perdidos, e é esse o encanto d’O Sangue das Flores. Ouvimos uma conversa íntima da Rute consigo mesma, e essa conversa bifurca em dois sentidos: um é o da candura, daquela que vem das crianças que brincam sozinhas durante horas e só desistem quando são chamadas pela segunda vez para dentro de casa; o outro é o de uma tranquilidade, de roupagens quase transparentes, face à violência de que o mundo é capaz em doses diárias. Ouvimos esta conversa íntima como se atrás de uma porta fechada, e compadecemo-nos. É como vermos uma pessoa a jantar sozinha num restaurante. Vermos o que faz enquanto o prato não chega, o que faz com as mãos, a coragem que mostra em enxotar o rumor do mundo. Também já disse isto noutro sítio, e, ao falar deste livro, o sentido do que disse encontra uma morada digna: o bom poema é aquele que nos deixa ouvir uma conversa que o poeta tem consigo mesmo. E esta é uma conversa de surdos, claro. Em contrapartida, quem escreve sentindo-se observado nunca se irá despir.

A capa deste livro é alegórica: metade mulher, metade voo. Quem diz voo diz sonho, e um sonho só se constrói sobre um pano-de-fundo real. Isto é trivial. O que importa no livro da Rute é uma vontade, uma vontade de contornos muito delicados e ponderados, de reabilitar o mundo através da beleza possível que sobrevive nas coisas, nos lugares e seus habitantes. Quando falo em lugares, falo sobretudo nos lugares da memória. É sabido: a poesia é um corpo vivo que reinventa a sua própria memória. E então é aqui que a voz da Rute entra com uma frescura diferente: O Sangue das Flores apresenta-se-me como a ventilação do desastre. Aqui faço uma pequeníssima e talvez escusada ilustração: “[…] aqui estamos neste desabar/de pele, neste romper alegorias, nos ternos incêndios da manhã, // é meia-noite, talvez hoje anjos recaiam sobre a minha praga, esta mão/que ainda balouça o fim do mundo.[p.29]” Quando li este livro, lembrei-me imediatamente de um exercício. Imagine-se entrarmos numa casa abandonada, de madeiras podres e nuvens de pó, e, sem tocar em nada do que é memória nessa casa, pormo-nos a decorá-la com flores, sedas, coisas de uma delicadeza superlativa. Não se mexe na disposição das coisas, no rumo selvagem da memória. É proibido. Não podemos sequer enxotá-la. Quando li O Sangue das Flores percebi que a Rute trabalhou sobre este tipo de reconhecimento das coisas, e apercebi-me de que ela trata dos escombros como se tenta sossegar a dor de uma asa partida. É bem mais difícil fazer isto do que deitar tudo abaixo e construir de novo. A suspensão do desastre envolve um exercício de coragem, no olhar que segue inquisitivo, a medo, à procura de um reconhecimento do eu nas coisas antigas. Escreve a Rute: “talvez sentir melhor seja um pouco mais de coragem, / verificar por baixo as secreções do que ainda deita, sinal de que mexe, / mesmo azedo, quase passado.” [p. 50] Plantar coisas num terreno minado é possível, claro, e o factor de regeneração da natureza, de costas voltadas para o homem, está presente neste livro. Leia-se assim os versos: “e a terra redescobre, talvez, todos os dias o que se quer encontrar/e diz-nos como não ouvimos.” [p. 43] A memória cicatriza, isto é também trivial. O que já não é trivial é a diferença operada na mente de quem interiorizou um certo grau de violência e usou essa violência para voltar a estranhar o mundo. Digo “estranhar” num sentido absolutamente positivo e saudável, como a personagem Miranda, em The Tempest, de Shakespeare, estranha o mundo de olhos a brilhar, ao ver o seu “admirável mundo novo”. Sobretudo porque é novo para si. O que a Rute consegue através da força de muitos dos seus versos é uma regeneração da sua paisagem interior, e o soro dessa beleza reclamada é encontrado num exercício de respiração boca a boca com a morte. Ou pelo menos com as várias perspectivas sobre a morte. Um encontro muito sério da voz da Rute consigo mesma: é isso que me atrai mais neste livro. E é isso que me parece jogar a seu favor, porque lhe transforma a percepção do mundo. E a nós, aos leitores, dá-nos que fazer com a espécie de candura em suspensão contínua dos seus versos. O que é feio é para se ver, ou melhor, reconhecer. E este tipo de reconhecimento, que envolve uma participação na forma como o mundo se nos apresenta, em vez de uma mera contemplação, exige também responsabilidade, e com ela um certo grau de decoro. Diz a Rute, ao fechar o livro: “tens a serpente no colo e acarinhas o veneno, / as feridas secam e os rostos também / e é feio apontar.” [p. 51]

É, ou pelo menos para mim sempre foi, extremamente irritante quando dizem: “levas-te demasiado a sério”. O que me apetece responder é: “mas como é que é possível não me levar demasiado a sério?” E onde é que há espaço para a palavra “demasiado” neste contexto? A poesia é uma conversa de surdos, ou de malucos, é à escolha do freguês. O leitor entra nesta conversa a meio. Ou fica a ouvir, de costas, de preferência, como se faz nos cafés, ou vai-se embora, entretido com os seus passinhos. Eu levo-me a sério, não demasiado porque o demasiado não tem aqui lugar, e acho que a Rute também se leva a sério. E só com esta atitude responsável perante a escrita é que se pode dizer: eu escrevo. Não é a poesia-laracha que me interessa. Não é a poesia com a sebenta da faculdade ao lado que me interessa. Muito menos a poesia de cuspidores de fogo do Chiado ou a poesia de versinho a condizer. Cada pessoa tem um embate sério, seríssimo, prometido consigo mesma. Do rebentar desse embate, dessas feridas, vem o sangue, e também há flores, mas no final, estendidos nessa espécie de ringue ontológico, não podemos ter só o sangue ou só as flores à nossa volta. Coragem, coragem e mais coragem. É o que se exige. E que todos os que escrevem se levem estupidamente a sério. Que não se invente quando não se encontra o pulso, todos temos as nossas pequenas mortes; que não se vampirizem mortos quando andamos de nariz entupido e não cheiramos o nosso próprio sangue. Ele há de cheirar. E o trabalho da Rute é lento, paciente, e chegou, e não vampiriza, não repete, até porque não se pode repetir a respiração particular de uma vida.  



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