sexta-feira, fevereiro 19, 2016

POESIA NO MATADOURO


Uma espécie de manifesto contra a transformação, feita por poetas e editores, da poesia em matéria efémera do capitalismo

de Joana Emídio Marques



Já não há poetas.

Há vacas para o matadouro,

prontas para o abate.

Morte limpa e certeira: um livro de poemas.

Morte organizada e asséptica entre capa, lombada

e fotografia da jovem vaca enquanto poeta.



Todos os dias é preciso matar uma vaca,

imprimir um livro, chamar-lhe poeta

Cabeças de gado para servirem a horda faminta de

comedores de carne poética processada.



Cada vaca dá poesia para dois meses.

Três no máximo.

Depois passa de validade.

Chama-se outra.

Corta-se-lhe as orelhas antes da estocada final no coração.

A coitada, dizem, não deu por nada.



Sai mais um livro ainda a pingar sangue

A carne fresca sempre agradou aos empreiteiros

E os congeladores não têm espaço para mais poetas.

Alguns estão lá há anos e

ninguém os come



Sobretudo aqueles que ficaram intactos,

os que ninguém petiscou.

Aqueles que serviram apenas para compôr a mesa

nas revistas de fim-de-semana:

os idiotas precisam de poetas a quem dar estrelas.



E as vacas gostam das estrelas,

 dos idiotas e das revistas de fim-de-semana..

As vacas acenam com a cabeça e abanam o rabo:

estão contentes com a sua morte.

Gostam de ver a sua carne a apodrecer ao sol

dos elogios.

Fast-poemas comprados numa editora drive in,

embrulhados e servidos em papel colorido

Enquanto os poetas se fantasiam numa vida lendária

de animais selvagens



Até o Herberto se tornou uma vaca leiteira

que dá poesia todos os anos,

sempre a tempo da feira do livro.

Como será o leite dos mortos?

Oh coelacanto, já ninguém te quer conhecer,

Agora querem todos comprar-te!



E quando não há Herberto,

há noviças.

Engordadas à pressa com ração de Cesariny

Ou

Meninas de boas famílias que escrevem versos

com putas e conas e fodas e nisso reside todo o seu génio

e nisso reside a sua ousadia, a sua eternidade

E chega para vender mais uns quantos livros

e uma noite de poesia na Barraca



Mas não escapam às grandes arcas frigoríficas dos talhos modernos;

 Tens a cona congelada, idiota

e agora ela já não te serve para nada,

porque conas congeladas há muitas e só tu, poeta,

não tinhas percebido.



O povo agora compra poesia.

Antes comprava casas e carros e viagens a Cuba.

Agora compra poesia barata.

Produzida em massa nas tascas:

fast-food, fast-glory

As palavras são tóxicas,

potencialmente cancerígenas,

eventualmente fatais,

mas ao menos não há hipoteca,

nem credores.



A poesia já não é morte a crédito.

É morte comprada barata,

para adornar a pobreza.



Poesia, máquina de imprimir livros,

mortos em série,

de forma limpa e sistemática.

Entre capa, lombada e ilustração personalizada:

a cada vaca o seu carimbo



E elas morrem. A poesia morre.

Mas todos estão contentes.Contentados.

A morte tem agora um carimbo,

a marca do dono

Pobre arremedo de eternidade!





E tu quando vais para o matadouro?

Olha que morres na mesma, mas morres sozinha.

Olha que os poetas já não gostam de solidão.

São vacas de circo, da graça feérica da miséria.

Imprimem-se livros, paga-se o bilhete, vê-se o espectáculo.



O povo grita, aplaude, grita bis

A vaca lança o livro para a plateia

Alguém o apanha

Alguém o lê em apoteose.

Há aquele verso extraordinário e ele grita:

Ca-ra-lho!

E o povo rebenta em uivos e aplausos.

E triunfante a vaca agradece a sua morte,

o seu aviltamento,

a vaca agradece que a comam.



A poesia morta vai em digressão.

O empresários do matadouro garantem que em todas as salas

alguém leia aquela passagem providencial:

Ca-ra-lho!

Os mais influenciáveis começam a sonhar

nos seus moleskines comprados na Fnac

e escrevem com enlevo três metáforas, dois trocadilhos e um palavrão a rematar o verso.



Todos os dias há mercado.

Todos os dias há poemas frescos,

Compram-se em saldo ao fim de um mês em banca.




Fevereiro de 2016




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