terça-feira, novembro 29, 2016

Coragem, meus senhores

Incendiar a Tabacaria
Álvaro, Ricardo, Bernardo, Alberto, Fernando,
sentaram-te ali no Chiado, mãozinha ridícula pousada na mesa, nem o prazer de um cigarro, nem o copo de vinho, de aguardente ou de absinto. Nem poesia, nem chocolates. Só lojas, gente feia, turistas sem metafísica que vão sentar-se a teu lado, dar-te a mão e tirar fotografias como se tu pudesses algum dia ser uma imagem.
Sentaram-te ali, muito direito como tu nunca foste, porque tinhas sempre os ombros curvados como aqueles que não se podem enganar a si mesmos sobre a inutilidade de todos os gestos, sobre a impossibilidade de todos os sonhos, sobre o absurdo de todo o existir.
Puseram-te ali à mão de semear de turistas, consumistas, artistas de rua, logo tu que tinhas uma repugnância total por todos os que não percebiam à partida a sua derrota. Logo tu, que sabias ser irónico e mordaz, logo tu que não perdoavas o logro. Logo tu...

Ah Fernando o que eu gostava era de te ver levantar dali daquela cadeira de pedra e distribuir lambada e pontapés, numa violência que este tempo condena. E chocar as esplanadas ociosas que te contemplam sem te ver. Gostava era de te ver percorrer as livrarias, as editoras, vir aqui a esta casa museu onde te enterraram para dar emprego a uns quantos maus escritores, e queimar tudo isto. Queimar tudo. Queimar, como Virgílio queria fazer com a Eneida, porque percebeu, como tu, que nenhum homem, nem mesmo os poetas geniais, podem tocar o absoluto.
Nos quartos onde tu viveste miseravelmente erguem-se agora senhoras e senhores gordos que querem ser teus donos. E escrevem livros e fazem colóquios a ensinar-te. A ensinar-Te, calcula tu?
E vendem-se a bom preço uns bonecos esfíngicos do que se pretende teres sido tu: silhueta preta, oculinhos, chapéu. Vendem-te, Fernando. Vendem-te e vendem-te. Uns como conhecimento, outros como objecto “made in china”, para pôr no frigorífico, para beber leite, para compor a estante.
A pouco e pouco as tuas palavras desaparecem sob as palavras que outros querem que tu digas. Sobre a poesia que dizem que tu escreveste. A pouco e pouco desapareces sob a imagem que o Almada fez de ti e onde tu já não habitas. Alguma vez habitaste? Como poderias? Tu que fugiste de todas as imagens, de todas as utopias.
Continuam a querer-te casado com a tal da Ofelinha, ou maricas, mas sempre quotidiano e fútil. Qualquer coisa que sirva para nós sentirmos que te possuímos. Como se a poesia fosse coisa que se tivesse ou não tivesse.

Arranjaram-te tantos heterónimos quantos estudiosos e viúvas e viúvos. Cada um quer achar o seu e dar-te mais um nome. Porque achar um nome é achar uma prisão. Querem-te ali sempre igual à imagem que inventaram para ti. Mas que não é a tua. Tu não tens imagem.
Queria era ver-te aqui a desmentir-nos a todos, com as tuas roupas elegantes e velhas, a tua falta de dinheiro, o teu cansaço, o teu desespero. Queria ver-te aqui quando eras um homem ignorado pelas mulheres e bebias copos solitários e rias e não eras um mito. É provável que nos fôssemos logo todos embora. Eras um bocado excêntrico, solitário, exalavas derrota e as pessoas não gostam disso. As pessoas só gostam do sucesso. E até fizeram de ti um morto de sucesso.
Ao velho que serias hoje ninguém daria lugar no eléctrico. Terias uma reforma miserável de 500 euros e é provável que não encontrasses editora que olhasse duas vezes para os teus poemas. És demasiado simbólico, metafisico, confessional. És muito pouco coloquial. Terias que dar uma no Ezra (Pound) e outra no T.S. (Eliot). Terias que ser cool, ter hype, aparecer nas revistas, ir à televisão. E tu não tinhas jeito para isso.
Não ias em modas, nem saberias como ir. Eras frágil, tímido, tinhas vergonha de existir.
Esta gente que hoje te celebra não gostaria de ti. Porque esta gente, os tais da nossa pátria, a Língua Portuguesa, gostam é da Matilde Campilho e do  Valter Hugo Mãe, e de poesia com trocadilhos do Caralho.

O mundo, como sabes, está cheio de génios e os génios são sempre aqueles que estão perto do poder. Se vivesses hoje em Lisboa não terias dinheiro sequer para pagar um quarto, porque estão todos alugados aos turistas que vêm sentar-se e dar a mão flácida à tua estátua. Não terias certamente o Esteves na tabacaria e quase não terias jornais.
E estamos hoje aqui, Fernando António Nogueira Pessoa, para te matar mais uma vez. 
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[Texto lido hoje na Casa Fernando Pessoa na apresentação da edição da Tabacaria da Guerra&Paz a quem agradeço a ousadia de me convidar quando o meio literário português se esforça para que eu desapareça.]


Joana Emídio Marques

Estou seguro de que vos hão-de ocorrer outros epítetos, a pouca imaginação acaba sempre por ficar de trolha, debaixo do lavatório das frases a recompor o desastre, a desmontar a ênfase das frases, pontuá-las ao contrário, retirar as luzes da árvore, recolher o papel de embrulho desfeito que era o que mais valor tinha cobrindo a desilusão dos presentes, e com o aspirador e a sua música monótona, os passinhos de dança entrevada, para cá e para cá, a líxivia, o balde e a esfregona, de modo a que de tudo se extraia um contrasenso, são os expedientes a que se dão, na simplória condição de animais entre-dentes, em vez da faca, a colherinha maldizente mexendo o chá, em tudo projectam o vício, essa falta de alcance, porque ser português, como sabemos, é há muito também isso, essa falta de horizonte que impede de ver no outro alguém mais, portanto, ser corajoso é já de algum modo ser estrangeiro a tudo o que vos é familiar, o que podem aceitar, compreender, os limites em que aceitam concordar, por isso resta-vos, espremida, essa pouca dose de imaginação para falcatruas, esse veneno receitado, para dar-vos licença da mesa na hora de encarar a realidade, um mecanismo de auto-preservação, usam-na para se distanciarem, salvarem a pequenina ilusão, e nisto, neste gesto deslumbrante na sua imprecaução não vêm outra coisa que um desmancho, algo tão contrário às noções que guardam do que é próprio, e já vos oiço dizer lá se pôs aquela maluca, acontece que (talvez) dentro de algumas décadas, se vos fosse contado não como um episódio havido ontem, há umas horas, mas um rumor ou um mito, uma velha história, assim poderiam mudar ligeiramente de posição, admirar o facto vagamente, mas nisto, com certeza, não terão para vós mesmos um exemplo claro, natural e acabado de coragem, um sem mas, preferirão porventura ver um sinal de destrambelhamento, até, e por vir de uma mulher (e tão poucas percebem a ingrata margem ao mesmo tempo fabulosa dessa diferença nalguns campos), verão aqui um sinal de histeria, um manifesto descabido, tresloucado, acto de vaidoso desespero, porque tudo entendem na moldura enfadonha do vosso próprio espelho, o reino infecto, não vêm nem admitem um peito tão entregue às balas, porque nada disto vos remete para vós próprios, não fala na vossa língua de subtilezas e infinitos degraus na escadaria da cautela, preferem justificar-se recusando a hipótese de haver noutro a simetria oposta e mais violenta ao vosso cálculo, ainda aqui há uns tempos vi uma parva aqui ao lado a pendurar como se numa faixa sobre o deserto da vida dela aquela citação do Kerouac... “The only people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones who never yawn or say a commonplace thing, but burn, burn, burn, like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars.” Esta gente que eu conheci tão de perto que ainda hoje deles tenho lembranças que me sacodem como pesadelos, com quem convivi sem ter a coragem dos pressentimentos, num aperto tedioso de dia sim dia sim, esta gente de quem nunca vi senão um tráfico de garfos pelas costas, a ferrugem do nojo a progredir alta noite em alta fraga, essa mesma gente que passadas décadas cita os malucos todos, um dia depois, no minuto em que é certo ser já tarde para fazer alguma coisa, largam as suas malas cheias de infinitas reservas, e vêm erguer hospícios com palitos e flores, fazer os seus clubes e associações em memória e homenagem aos mortos que se estivessem vivos continuariam a odiar, a boicotar e silenciar por todos os meios.

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