quarta-feira, junho 14, 2017

João Barrento sobre "Animais de Sangue Frio", de Elisabete Marques



Não quero falar das minhas impressões de leitura deste segundo livro de Elisabete Marques sem antes lançar uma ponte que o liga – ou talvez melhor, o separa – do primeiro, publicado em 2014 com o título Cisco. Porque este novo livro representa, no meu entender (e no meu entendimento da poesia em geral), um enorme passo em frente. Que passo? Aquele que leva de um minimalismo nominalista em que um Eu se reflecte e se confunde com os «ínfimos acontecimentos» da casa ou de territórios próximos, a uma escrita em que o eu deliberadamente se distancia, se mascara, quase se apaga, para deixar falar e mostrar-se uma série de «bichos» que de algum modo configuram um catálogo de tipos – não necessariamente zoológico – com perfis próprios, habitantes de um mundo mais vasto e apresentado a partir de um olhar claramente taxonómico, ordenador (isto é visível na própria estrutura deste novo livro, a que ainda me referirei). 
Lembro então rapidamente o que li em Cisco, e de que dei conta apenas ad usum privatissimum. Em 2014 eu encontrava nesse livro uma poesia descritiva, de expressão subjectiva e imagética, vivendo da frase nominal que constata e regista os acontecimentos mínimos – ciscos, grãos de existência –, para depois tentar descobrir-lhes o reverso com uma metáfora ou uma imagem mais ou menos ousada, inesperada, às vezes précieuse. E numa linguagem em que o único texto crítico por que dei na altura encontrava (cito), «um estrangulamento deliberado da sintaxe», um «esfacelamento impiedoso da palavra», «pontuação adversa à norma», «opções lexicais menos vulgares, quando não abertamente disruptivas...». Tratando-se de poesia, não há nisto, evidentemente, qualquer marca negativa. Mas eu pensei nessa altura, e continuo a pensar, que a poesia hoje, neste mundinho acomodado e cabisbaixo, ou então inconscientemente eufórico, precisava de ir mais além, respirar mais fundo, ampliar os «pequenos charcos» dos dias à dimensão de um pequeno terramoto. Sem denúncia explícita e fácil, sem renunciar a uma dimensão estética de rigor, mas configurando atmosferas de maior fôlego. Não iria tão longe como o Fernando Guerreiro num dos poemas do seu livro Gótico («A negação do poema»), mas sirvo-me dele para assinalar já a diferença que marca este segundo livro da Elisabete em relação ao primeiro. Lembro o início desse poema do Fernando – que logo a seguir, curiosamente, dá passagem para o domínio zoológico deste Animais de Sangue Frio: «A tentação descritiva surge quando a poesia falha de vez / o seu princípio. Isto é, quando deixa de ser uma palavra / arrancada à morte para se tornar uma promessa muito / antes de tempo cumprida. [...] Então, / para contrariar o sentido singelo do destino, podemos / recorrer a algumas noções correntes de zoologia.» (p. 66) Agora, neste segundo livro de Elisabete Marques, as palavras são arrancadas a outros fundos de experiência. Como diria ainda outro poema do mesmo livro do Fernando: «Findo o tempo frutuoso da poesia pessoal / em literatura é sem nostalgia que rebuscamos / o fundo de armários onde palavras sem filamentos / se apagam uma a uma...» (p. 12). 
Lemos este novo livro da Elisabete e percebemos que ele deixou para trás a «poesia pessoal» – quer dizer, a pessoa poética a que se chama sujeito da escrita situou-se noutro plano, sem deixar de ser ela própria – para ir rebuscar no fundo de outros armários palavras arrancadas ao próprio corpo. Mas não nos iludamos: este é um livro construído, um «projecto» poético rigorosamente estruturado. O poeta Gottfried Benn («um pessoano tardio», como lhe chamou Vasco Graça Moura), escreveu um dia (e  poderia ter sido outro moderno qualquer): «o poema não nasce, o poema faz-se». Também com todo um livro isso pode acontecer. Acontece com este, que pode ser lido na totalidade da sua construção, na sua linguagem e no olhar que o alimenta e conduz, à luz de uma figura muito moderna (desde Baudelaire), que é a da alegoria. Como sobre ela escreve W. Benjamin, também aqui «cada personagem, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra coisa». De facto, neste livro, a linguagem, não já inexpressivamente descritiva, mas imageticamente figurativa – configurando perfis comportamentais, mentais, afectivos dos nove tipos de «animais de sangue frio» (animais que somos todos nós? A epígrafe de Valéry – «la vipère que je  vêtis» – parece confirmá-lo!) –, essa linguagem destes novos poemas serve-se preferencialmente da imagem para  encenar  uma  leitura  alegórica  do  mundo,  para oferecer um catálogo poético subtil da fauna que povoa os territórios actuais desse grande mundo – ou do nosso pequeno bairro. Na alegoria não há intenções totalizantes (moralistas ou outras) nem estratégias de empatia (sentimentais): pelo contrário, «privilegia-se a coisa [aqui: o animal] face à pessoa e o fragmentário frente à totalidade» (WB). A alegoria serve-se do distanciamento e do estranhamento, nela cada imagem do poema (do animal sob observação) é como um emblema e, como diz ainda Benjamin, «à volta de um centro figural (...) agrupa-se todo o conjunto dos emblemas». Pode ser este o processo de escrita de um livro de poesia como este, um bestiário psicossocial da fauna desencantada ou convencida, nada sentimental, antes de sangue frio, que anda    por aí e vai sendo dissecada com o bisturi  (de  ponta  quente,  sem  conceptualidade, mas com uma certa ironia de fundo)  de  quem  andou,  com  tempo, a analisar cobaias de laboratório ou a observar casos particulares em trabalho de campo. E o resultado é notável, pela imagética actuante e original e por uma capacidade de figuração (des-figuração? re-figuração?)  e  distanciamento, eloquentes e loquazes: os poemas falam, ao que me parece, por toda uma enciclopédia do género humano. O conjunto pode ler-se também como uma dramatização, com múltiplos actores – exactamente nove, não personagens individualizadas, mas figuras tipificadas – representando a sua farsa? comédia? tragédia sem catarse possível?, neste teatro rasteiro, ou «apocalipse alegre», em que vamos representando os nossos papéis. Mesmo quando se diz «eu» está-se a desempenhar um papel (que mais podemos fazer hoje?), ou a assumir a descrição de uma espécie de «quadro de género». São excelentes Rollengedichte, como dizem os alemães, precisamente poemas em que nos desdobramos e alguém assume um papel e fala por nós. Aqui, numa linguagem exacta e ainda rara, quase clássica... 
Assim, seria possível extrair de cada um dos núcleos de três poemas postos na boca de cada um dos nove tipos animais-humanos uma ou duas frases em que o olhar do/da alegorista capta e propõe traços essenciais de cada um. Por exemplo: 
- Os famintos diriam: «Do mundo cobiçamos tudo» e «tudo apanhamos, até os séculos...»;
- Os lentos: «Como quem pudesse morrer sem dar por nada...»;
- Os fulgurosos: «desejam a façanha, a pirueta, / o salto mortal»;
- Os ocultos: «Faço da sobriedade térrea aconchego da minha dúvida...»;
- Os frenéticos: «Não sei que furor me assalta ao meio-dia», de «ressaca, zumbido, estouro, festa»;
- Os prudentes: «cauteloso no elemento, avanças» e «deploras a solidão que inventaste»;
- Os sinistros: «o bicho mudo e opaco é aquele que morde melhor»;
- Os inchados: «Como um balão, redondo de nada ou de ar...»;
- Os novos: «Nós, frequentemente nós, continuamente juvenis», e «gosto da conversa fiada...» 
Naturalmente que uma frase não faz um poema (muito menos um poema como os deste livro). É preciso atentar, nas construções poéticas de Animais de Sangue Frio, na profusão do pormenor imagético servido pelo rigor e a contenção de uma linguagem que vive da escolha da palavra justa e ainda e sempre de um pendor descritivista, mas agora da imagem que se dá a ver, ela mesma, para traçar um perfil, sem a metáfora embelezadora ou transfiguradora (não há aqui transfiguração, apenas figuração). É a pujança controlada, burilada, das imagens que desenham, no final de cada tríptico, o perfil múltiplo de cada tipo deste bestiário muito particular. Mesmo os preciosismos de linguagem, agora muito mais raros, são marcas que acontecem no momento exacto, caem no lugar certo e enobrecem um discurso que nunca é descuidado nem casual, mas sempre deliberadamente «este acerto de linguagem e ruídos» (p. 72). 
Por outro lado, por estes poemas que nos colocam diante dos olhos tipos humanos (não os leio, como ficou claro, como retratos de animais) passam todas as afecções da alma e do corpo, como que decalcadas do Livro 3 da Ética de Spinoza, sem proposições e escólios, mas moldadas com o barro imagético da poesia. Como diz um dos poemas: «Nessa experiência do susto e do espanto, / tecíamos sem saber as imagens.» E essa tecitura, diria para concluir, vai sendo discreta e pujantemente construída por uma Penélope escondida que nela vai inserindo, tentando compreendê-los more poetico, os padrões que hoje definem a fauna do mundo – a «humanidade», se quisermos, o que quer que isso seja. Adorno escreveu num célebre ensaio sobre «Poesia e sociedade» que a palavra do poema tem de ter um sentido para além de si mesma: «Só entende o que um poema diz aquele que ouve na sua solidão a voz da humanidade.» Eu ouço nestes poemas da Elisabete Marques que parecem pintar tipos animais (será?) essa voz da humanidade, nos seus muitos rostos. Ou também os ruídos anódinos, sem ecos retumbantes, da fauna humana e urbana do meu bairro. A «Natureza» (animal ou outra), essa não está lá, apesar das aparências em contrário, a julgar pela matéria de que se fazem muitas vezes as imagens. A Natureza, assim como assim, nunca ninguém a viu – a não ser talvez, no seu idealismo imaculado, um poeta como Hölderlin. Mas esses eram outros tempos – também eles cheios de «animais de sangue frio», hélas. Lembremos uma página que parece ter sido escrita para hoje: «Desde sempre bárbaros, tornados sempre mais bárbaros pelo trabalho e a ciência, e até pela religião (...) O que vês são operários, mas não seres humanos, pensadores, mas não seres humanos, padres, mas não seres humanos, senhores e servos, jovens e gente instalada na vida, mas não seres humanos – não será isto um campo de batalha cheio de mãos e braços e toda a espécie de membros destroçados, enquanto o sangue derramado se perde na areia?» (Hipérion II, ii). 
Este campo de batalha é ainda o cenário dos poemas dramáticos, ou do drama poético, dos Animais de Sangue Frio de Elisabete Marques.

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