quarta-feira, julho 12, 2017

A poesia como contra-criação / texto de Fernando Guerreiro lido na apresentação de "Animais de Sangue Frio", de Elisabete Marques



1. “No meio do caminho da vida” (ASF: 21), um animal, massa escrevente sentada a uma mesa, apalpando/testando emoções e pensamentos, apercebe-se de que tudo mudou (o mundo, ou mesmo ele, já não são os mesmos) e que um “território inédito” (ASF: 21), empolado pelo “coaxar” das palavras (ASF: 13), ali o espera.Em Cisco (Mariposa Azual, 2014) procedia-se ao levantamento mínimo e exaustivo de um território, tanto exterior como interior, indo-se da objectividade plana, mas crispada, de poemas entendidos como “naturezas mortas” (C:11), (“confinadas” [35]), à sua reanimação pela vinda ao de cimo do carácter (in)orgânico, convulso e metamórfico da linguagem e da matéria. No entanto, coexistindo com o modelo de uma poética reduzida (“nunca a gramática foi tão quotidiana”, escreve [C: 21]) e trabalhada de acordo com o princípio ético da literalidade (“tome-se pois/ à letra o que não pretende ensinar” [C:11]), de “mínimos acontecimentos” (C:22) (“pulsares”), emergia já em Cisco a possibilidade de uma poética da imanência (“emanação de solo” [C:17] que reata com a “força de evocação [da] terra” [C:33]), nas suas erupções/consolidações formais, “animista” (amiga da “potência dos germes” [C:36] e atenta ao “júbilo de insecto” [C:32]). A secção final do livro, “Grãos Exemplares”, que evoca a poética lucreciana de Le Parti pris des choses de Ponge (1942), anuncia mesmo o metamorfismo de Animais de Sangue Frio (Língua Morta, 2017).Aqui já se deu a “queda” e caíu-se num abismo de que se pretende sair à força, fuçando pelas palavras o caminho. Passa-se da “horizontalidade” com nós, “grãos exemplares” de matéria e de vida (a “forma” é isso), à “profundidade” de um ponto de vista (rasteiro) que inverteu o alto e o baixo, o céu e o inferno, e vê (percepciona)/ escreve a partir de baixo – em função do olhar (volumétrico = prismático e não linear = cristalino) de uma serpente que engoliu o cimo (vd. epígrafe tirada de “Ébauche d’un serpent” de Paul Valéry [Charmes, 1922 (5)], e os poemas da primeira secção, “Dos famintos”) [1].Os anjos ou outros seres malditos caíram (é essa a dimensão luciferina que a obra convoca [ASF:55] e a gravura de Pieter Soutman, na capa, fixa), mas agora, conhecidas as circunstâncias da queda e os caminhos que organizam esse submundo (o livro está dividido em 9 secções, tantas quantos os círculos do “Inferno” de a Divina Comédia de Dante, constituindo um dos seus “bestiários” possíveis), rastejando de encontro às anfractuosidades do terreno, vencendo-as ou não, esses seres subterrâneos (“sou/ imenso, ainda que subterrâneo” [ASF:36]), assim como aquele(a) que pelo discurso lhes dá a mão, encontraram o caminho para a superfície. 
Se o ponto de vista do alto (teo e teleológico), que pode ser o de um pássaro, abstrai e aerifica, o de baixo, da serpente – um pássaro que perdeu as asas (“reptile aux extases d’oiseau”, Valéry), rasteja (“que podemos, rasteiros?”) e, como o poeta de Poe (“réptile rêveur”), não esqueceu o que viu – é o do escultor que constrói as suas obras a partir da matéria (real) que tacteia, cheira e afaga.[2] 

2. Trata-se aqui, com efeito, não só de partir do material, de um “excesso de matéria” (ASF: 27), carne a amassar, trabalhar como escultura, como, pela tração das substâncias/corpos, soltar o fogo (melhor, o “flogisto”) neles contido (“precisamos de incêndio”, lê-se [ASF:9]) e assim produzir um brilho (“nossas crostas são ávidas de brilho” [ibidem]) não “exterior” mas “interior” à matéria que por ele clama. 
Miguel Ângelo afirmava que nos cabia extrair a “forma” que já se encontrava na pedra (mármore), mas aqui, pela tração/violência dos materiais, há antes que produzi-la, forjando (e forçando-se) uma forma que não é “pura” (como o era a “ideia” de Miguel Ângelo) e que nos vem já tocada, de/caída (“repousa, aqui, uma pêra já picada,/ indício de saliva e de falha” [12], escreve-se)[3]. 
Tudo “formas mortais” (perecíveis e assassinas) (14) que correspondem à urgência de uma fome predatória (“porque do mundo cobiçamos tudo” [11]) e própria de uma boca/estômago (“uma boca escancarada como um vaso” [11]), dentada (“exercemos os dentes que nos crescem no focinho triangular” [10]) e provida de uma língua (animal com patas [19]), “torcida” (de carne, como a de Heathcliff) e “bífida” (“langue à double fil”, Valéry), que devora a fauna do ar (“E o vermelho da língua arrebata a candura dos insectos/ torcida como um velho papel onde se marcou a hora do prodígio” [10]).Não encontramos aqui, assim, a “aura” de uma concepção de poesia com “asas ou pêlo para a sedução”[14] mas antes uma poética rasteira (“que podemos, nós, rasteiros?” [11]), ao rés da lama e não da “alma” (13), primitiva e bárbara (“um modo antigo e barbaridade” [11]), que pode revelar-se o lugar comum de um “festim canibal” (13), sinestésico e poético (Eugène Savitskaya). 
Neste campo agreste mas pujante de palavras, a que corresponde uma “ética plana do despojado” (34), aderente ao rigor do terreno (33/34), das “formas mínimas” (“os modos de ser inferior, perto dos besouros e das formigas” [31]) e dos “mínimos pulsantes” [34])[4], a “metáfora”, como a “maçã” intocada, degrada-se (“tudo tocado”, [11]), integrando uma gestação/floração carnal e venenosa (“a nossa carne rebenta igual às flores nas árvores” [10]) que sorve (engole e regurgita) todo o real: “o ar é nosso regozijo/ tudo apanhamos. Até os séculos./ Por isso nossa boca escancara, /catando ventos e algum alívio” (12). 

3. Animais de Sangue Frio, como o nome indica, é um livro escrito do ponto de vista daserpente (o sujeito de enunciação muda de uma forma/figura predominantemente feminina [Cisco] para uma 3ª pessoa do plural [1ª secção] ou do neutro masculino): a voix “dans la verdure”, “bête aiguë” (Valéry) que nos fala de um “abismo animal” resultante da “queda” e que constitui um princípio ao mesmo tempo de “metamorfose”[5] e de “horror” (ira luciferina, [55]) pelo “criado” (“mundo que nunca benquis” [31]).Este é um discurso portanto de um “anjo rebelde” (Byron) ou “animal carnívoro” que diz não (“fora do eixo,/ não acerto” [41]), que expõe o “nada” da criação e que afirma, se confunde, com o projecto de uma contra-criação. 
Deste modo, encontramos nesta selva ou emaranhado de formas e de palavras tanto a antropomorfização do natural como a bestialização do humano, produzindo-se desse escândalo (“proeza de criação”[22]) novos seres, formas híbridas de síntese, monstros em que não só se processa a confusão de géneros ou espécies (se perde a noção de “identidade”: “não sou nada, não coincido/ com o que pretendem de mim” (41), como eles, por si, constituem um laboratório experimental de “formas” (“Num instante concretizo-me./ Depois, pouco a pouco, retorno ao ágil tormento” [39]), ao fim e ao cabo, toda uma “ciência nova” (Dante/ Valéry) ligada à procura do “desconhecido” (19, 21).O livro, assim, ele próprio um novo corpo=espécie, orgânico=inorgânico (mas sempre “monstruoso”, como o queriam os românticos), abre-se, desdobra-se e constrói-se, oferecendo (-nos) o “delírio” (“júbilo”[13]) do espectáculo de umacontra-criação que gera, aos nossos olhos estarrecidos, um novo mundo (“a possibilidade de gerar/ um sítio”[32]): o “contra-relevo” do materialismo do baixo (o de um materialismo sem ontologia e de uma fenomenologia perversa, a que se refere Bataille)[6], cujos principais instrumentos são o riso (de uma “boca escancara[da]” no ar [12 (26, 35)]) e o informe (de modos de ser “invertebrados”, “inferiores”[31]) afinal em consonância com o estado pânico, anárquico e genésico de tudo.Corresponde-lhe um discurso da “não-forma” e do “informe” (no sentido, ainda, de Bataille)[7] tanto no plano da violentação do semântico pelo sonoro (o “coaxar” da língua [13]: “Este acerto de linguagem e de ruídos, como o ch, o argh, um grande S” [72]), como, no plano figural do “monstruoso” (das “formas”/pulsares, mínimas e máximos, dessa materialidade), uma corrente (lava) de formas-palavras enervadas por um saber do abismo (ventre) e do feio (na linha do Grotesco de V. Hugo), todo ele feito de nós/aglomerados (40) de uma matéria feliz que se contorce (25, 39), ostentando a novidade da sua forma (55). “Serei grotesco ou feio” (40), “serei obrigado a assumir a minha fealdade” (70), rejubila a voz enunciativa do livro.Enquanto “volume”, arquitectura (escultura) de nervos e terra, a sua matéria figural transfigura-se e assombra-se com aquilo de que é capaz (a sua engenharia orgânica, poética) (41) e, levada no “frémito” (delírio) dos seus movimentos (“da cauda ao lábio atravessa-os o movimento,/ a gana, o ardil nos olhos esbugalhados” [25]), pelo salto (27) e pela “dança” (“o júbilo de experimentar a curvatura” [26]), eleva-se e despega-se do solo (“ser quase/ e apenas uma linha de ar” [39]) ou então, percorrida/atravessada pela metamorfose das “formas” e “géneros” (seguindo o lema de Empédocles: “E, se me encontrarem, serei polígono, pétala, caco” [73]), granula-se e transmigra-se cineticamente pela luz (25) (com efeito, há um princípio/dispositivo de cinema contido no próprio trabalho interno da matéria [61]) até se dissipar como “pólen” (“o único deus verdadeiro/ é o estremecimento, a força, ou, se quiserem, o pólen” [41]) no pulsar do cosmos (35). 
Na linha do romantismo (negro) inglês (dos “grandes poemas metafísicos” de Byron [Cain] e Shelley [o soneto “Ozymandias”]), a poesia (poesis) pela declinação do animalesco (“Uma pluralidade de modos,/ posições, estratégias, sons e movimentos inauditos” [72]) afirma-se como o “orgão gerador” (“o grande deus das formas” [65]; talvez um Dionisio-Proteu) de umanova beleza (monstruosa, sim, e mesmo inumana) (vd. última secção «Dos Novos») que, com a sua “claridade negra de presença” (65), não só “[introduza] atrito na transparência” (71) como proclame a nova ordem, (“Esforço palavras que não tinha”[72]) de uma “estranheza/sem concessões e absolutamente real” (63). 
E, então, sim, faz todo o sentido a promessa do verso “Imaginamos tomar o chão” (11) e sermos “felizes” com isso: “Poderão cortar-me a cauda, mas, vejam, sucedo novo” (69).  
 (Junho/2017)  




[1] A figura da “mulher-serpente”, Eva sem plumas, surgia já em Cisco como “pele que dobra/ mordendo (…) o fio do corpo”(33): figura já da “queda”, ligada à lei da gravidade e à “perda da aura” (a queda dos “frutos”) e, portanto, à “força da evocação [da] terra” (ibidem).
[2] Talvez o Rodin dos escombros de La Porte de l’Enfer, projecto em que trabalhou entre 1880 e 1889 e depois retocou, deixando-o incompleto até ao fim da vida.
[3] Pense-se também na epígrafe de Manoel de Barros em Cisco: “Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos, teréns de rua e de música, cisco de olho, moscas de pensão…”.
[4] Um saber cruel e rigoroso (“como um movimento rigoroso” [13]) que se eleva a partir de baixo, de acordo com o que Bataille designa por “materialidade do baixo”, que toma “la matière comme le principe actif: un principe horrible et parfaitement illégitime” de “une baisseur qui ne serait pas réductible” (G. Bataille, “Le bas matèrialisme et la gnose” [1930], Documents, Mercure de France, 1968, [100-101].
[5] “Un besoin violent, se confondant d’ailleurs avec chacun de nos besoins animaux, excitant un homme à se départir tout à coup des gestes et des attitudes exigées par la nature humaine”, escreve Bataille no mesmo texto.
[6] “La matière basse est extérieure et étrangère aux aspirations idéales humaines et refuse de se laisser réduire aux grandes machines ontologiques résultant de ces aspirations”, comenta ainda Bataille (102/103).
[7] Na entrada “Informe” de Dictionnaire Critique (1930), Bataille escreve: “Affirmer que l’univers ne ressemble à rien et n’est qu’informe revient à dire que l’univers est quelque chose comme une araignée ou un crachat” (178).


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