sexta-feira, maio 18, 2018

Cortes de um leitor [Diogo Martins]


“Consideramos hoje normal encontrar nas nossas revistas – quase como num velho teatro do mundo – todos os domínios justapostos de uma forma contrastada: narrativas sobre a morte de massas no Terceiro Mundo entrecortadas por anúncios ao champanhe, reportagens sobre catástrofes ecológicas lado a lado com o último salão do automóvel. Os nossos cérebros estão treinados a sobrevoar com o olhar um campo de indiferenças de uma amplidão enciclopédica – em que o assunto tratado não é indiferente em si mesmo mas pela sua integração no fluxo de informações dos media. Sem se treinar durante muitos anos a embrutecer-se e a amolecer, nenhuma consciência humana poderia lidar com o que lhe impõem imagens e textos de uma única revista volumosa; e sem um exercício intenso, nenhum homem suportaria, sem arriscar a aparição de sintomas de desintegração mental, essa constante oscilação de acontecimentos importantes e de acontecimentos insignificantes, essas marés cheias e vazas das notícias que tanto pedem uma atenção extrema para, logo depois, estarem totalmente desactualizadas.
[…]
Uma tremenda simultaneidade alastra na nossa consciência informe: aqui come-se; ali morre-se. Aqui tortura-se; ali, amantes célebres separam-se. Aqui fala-se da segunda viatura; ali, de uma catástrofe de seca que afecta países inteiros. Aqui, dão-se dicas para pagar menos impostos; ali, há a teoria económica da Escola de Chicago. Aqui milhares de pessoas fazem alvoroço num concerto pop; ali, uma mulher morta jaz no seu apartamento durante anos sem ser descoberta. Aqui dá-se o prémio Nobel da química, da física e da paz; ali, um comboio cai num rio com duas mil pessoas. Aqui nasce a filha de um ator; ali, as avaliações sobre o custo de uma experiência política cifram-se entre meio milhão e dois milhões (de homens). – Such is life. Tudo pode tornar-se notícia, tudo está disponível. O que está no primeiro plano, o que está em pano de fundo, o que é importante, o que não tem importância, o que é tendência, o que é episódico; tudo se integra numa linha uniforme, em que a uniformidade produz também a equivalência e a indiferença.
[…]
Assim, quando, de manhã, saio para a rua e os jornais do quiosque me interpelam, só tenho praticamente de escolher a indiferença preferida do dia. A minha escolha recairá neste homicídio ou naquela violação, neste terramoto ou naquele rapto? Todos os dias temos de reivindicar de novo o direito natural de não aprender milhões de coisas. Os media velam por que eu não tenha de recorrer a isso; e, simultaneamente, velam também por que milhões de notícias estejam prestes a atingir-me e eu não tenha de olhar para um título mais do que um instante sem que outra indiferença tenha conseguido atingir a minha consciência. Se conseguir atingir a minha consciência, leva-me também a ter de marcar em mim uma indiferença cínica relativamente à informação que me chegou. Hiperinformado, registo que só posso encolher os ombros ante a maior parte das coisas, pois a minha capacidade de participação, de revolta ou de co-reflexão é mínima relativamente ao que se me propõe e me lança apelo.” 
(Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, 2011, pp. 387, 388 e 394).

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«Aquele que fracassa na sociedade neoliberal do rendimento responsabiliza-se a si próprio e envergonha-se, em vez de pôr em questão a sociedade ou o sistema. É aqui que reside a inteligência característica do regime neoliberal. Não permite que surja resistência alguma frente ao sistema. No regime da exploração de outrem, pelo contrário, é possível que os explorados se solidarizem e se levantem unidos contra o explorador. É precisamente nesta lógica que se baseia a ideia de Marx da “ditadura do proletariado”. Todavia, trata-se de uma lógica que pressupõe relações de dominação repressivas. No regime neoliberal da autoexploração, cada um orienta a agressão em direção a si próprio. Esta autoagressão transforma o explorado, não em revolucionário, mas em depressivo. Já não trabalhamos para as nossas necessidades, mas para o capital. O capital engendra as suas próprias necessidades, que, erradamente, percebemos como próprias. O capital representa uma nova transcendência, uma nova forma de subjetivação. […]
Queremos ser realmente livres? Não teremos talvez inventado Deus para não termos de ser livres? Perante Deus, todos somos devedores em falta. Mas a dívida (die Schuld) elimina a liberdade. Hoje os políticos acusam o endividamento como causa que limita em enorme medida a sua liberdade de ação. Se estivermos livres da dívida, quer dizer, se formos plenamente livres, teremos de agir deveras. É até possível que nos endividemos permanentemente para não termos de agir – quer dizer para não termos de ser livres nem responsáveis. Não serão talvez as dívidas elevadas uma prova de que não temos em nosso poder ser livres? Não será o capital um novo Deus que nos torna de novo devedores em falta? Walter Benjamin concebe o capitalismo como uma religião. Trata-se do “primeiro caso de um culto que não é expiatório, mas culpabilizante”. O estado de falta de liberdade perpetua-se porque não é possível liquidar as dívidas: “Uma terrível consciência de culpa que não sabe como expiar-se, recorre ao culto, não para expiar a culpa, mas para a tornar universal”.» 
(Byung-Chul Han, Psicopolítica – Neoliberalismo e novas técnicas de poder, trad. Miguel Serras Pereira, 2015)

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