quinta-feira, março 14, 2024


Na penumbra a roupa de cama lembra
um livro de ilustrações, tudo desfraldado
os lápis espalhados, o cheiro dela, o meu
essa sabedoria infernal das coisas do corpo,
peço-lhe tinta, e o golpe, esse impacto
de um bosque primaveril,
a superfície da tela canta e respira
e floresce, fico muito quieto,
calado assim tenho descoberto coisas,
venho de lá cheio de um pó que me
altera a cor dos olhos, e desse impossível 
pigmento azul procurado
por tantos pintores, 
vivo em doce confusão com o mundo,
se não temos nada para fazer, andamos
de carro, aceitamos algum convite,
toda esta gente é bela e estranha,
vive num carrossel de feira, a música é 
terrível e doce, uns nunca desarmam,
as piores intenções caem-lhes bem
como as nódoas de vinho, outros
não passam de vítimas, alguns persistem
enredam-se no papel de parede
e por fim desaparecem,
na legenda lê-se que os anjos
eram figuras vistas através do desejo,
as expressões que apanhamos
no rosto desses miseráveis dizem-nos
algo mais, que há tantos tipos de predadores,
e que os piores o que mais gostam
é de brincar com o tempo, e de esperar
por eles em lugares como este.


quinta-feira, março 07, 2024


Traz a música que nos esquece e diz-me
que os versos não passam
de uma rara doença do ouvido,
pois eis-me aqui sem remédio agrilhoado
como esse outro que veio e trouxe o vento
ele só, só ele, afoito luzidio
com aqueles gestos todos enervando o vazio
era da raça dos que surgem a horas inquietantes
batem à porta e fazem estremecer as sombras
batem, arrancam-na dos gonzos, entram
uns olhos enormes, sanguíneos, e falam
de tudo depressa, voltas ansiosas, levantam
viram interrogam a disposição das coisas
como se em busca de alguma tábua
para escapar ao naufrágio
meio diluídos na torrente da memória
trazem uma conversa absurda perseguem-nos
gastam a delicadeza em hábitos rudes 
e depois suplicam a todos por perdão, mas
se havia outro mundo de que lhes pedíamos
sinais, notícias, um cansaço doce
agarrando-se a um instinto mais subtil
deixando-nos sensíveis ao tacto e aos sons
depois com o desgosto pelas nossas vidas
também deixou de nos apetecer o que não existe,
a rosa invisível, a cor que nos abre,
esse excessivo olhar de tudo o que nos olha,
riso e ruína, por vezes ao provar o vinho
ainda o sentimos envolver-nos,
damos por nós na travessia das fronteiras
perfumadas, e lutamos estupidamente
por não adormecer então,
queres ficar sóbrio e só depois
cerrar os olhos e partir, talvez o vinho
seja tão doce por isso: a memória dos mortos,
o mundo apanhado de surpresa, perdido
um dia e de novo recuperado com toda
a dor e o absurdo encanto de quem regressa
e respira por uns instantes mais


segunda-feira, março 04, 2024


Eu mostro-vos a noite, aonde nos levava
estando proibidos os passeios à tona d’água,
e não havendo corpos anteriores aos nomes
nem ar puro nem impuro
nem casas de chá nem um bordel onde despir 
junto de alguém uma fantasia qualquer,
monstros calmíssimos a sós nos cafés,
os amantes desfeitos, abandonados
dois dedos amargos num copo,
um caderno absorvendo a corrente, 
frutos meio comidos suspensos
a própria boca tivemos de a inventar
de todas as vezes, dava logo
com um grito que nos fazia o rosto rude
atento mais que belo, e isso foi por esses anos
um princípio de subversão.
Depois esperámos, fizemos disto
o nosso talento, pois pode-se estar séculos
sem nada nos ser dado, nem uma rolha vir
só o ruído de um ponteiro
mastigando algures uns segundos,
reflexos que não suportamos, um mar
por onde ninguém zarpa
perde a graça e o susto, cospem nele
as unhas, não é já uma imagem vital, o mar
lembra o olhar das coisas que evitamos
um horizonte cheio de falhas,
e se nalgum ponto
tudo por aqui desfalece, nós é claro
temos vivido nos dias adiados,
de olhos fechados conhecendo todos os nós 
que se pode dar numa corda, e se
podíamos admirar-nos de tamanha ausência,
deste vento sem intriga nenhuma,
uma gente que surge sempre de costas,
preferimos outra coisa, e por isso
se escreve tanto e ainda 
cada um afundado na sua cratera, 
e talvez porque o mundo nos falta
chegámos a isto, largando por aí ossos
que nos levem muito mais tarde
noutras direcções, outras vidas e até 
novas espécies, mas por agora
podes ver já reflectidas na água as luzes
da outra margem, podes supor
que desta noite restará o impulso, a viagem, 
vozes que se encontrem noutra página.


quinta-feira, fevereiro 29, 2024


O que me perde e me aniquila 
como a Carilda é esse desvio da pupila,
esse gozo trágico para que o mundo
nos chama. Como o olhar nos absorve.
Seria tão difícil fazer um pássaro.
Alterar uma vírgula na composição das coisas.
Aqui, no calabouço do mundo, de madrugada 
consigo ouvir um. Do ouvido
depressa nos surge no esqueleto,
assim a memória canta debaixo da pele
do mesmo modo como da sede
que nos desfez os lábios
retiramos a forma de outro corpo,
encontrando pelo meio esses anjos sujos.
Contemporâneo sim, mas de quem?
Talvez de um que outro corpo desses
que se esquece nos bares, em comboios,
falésias, jardins rasos com sabor a vinho
onde eles fazem poses absurdas
aguardando-se nos bancos, depois
temos os quartos calmos, recolhidos 
onde alguma melodia raspada nos abraça 
e de outro modo como poderiam ainda
respirar estas coisas se já ninguém
escreve assim? Não farei do pó
um parentesco, dizias-me,
mas depois também o tempo se enredou
no brilho de uma estrela antiga, em sufoco,
sinto-lhe a fúria como a da sereia
que em miúdo tive num frasco, 
com um búzio e algas, e daquele choro
à cabeceira restam ecos húmidos,
a sensação por vezes de o quarto
ter ficado debaixo de água.
Mais tarde quis trazer-lhe as ninfas
de água doce do Camões,
o lento enredo dos corpos nus,
o cheiro da roupa abandonada,
a difícil correspondência que persiste
das primeiras visitas até às despedidas
quando cada gesto cede como fruto
de uma árvore desaparecida, e fica o frio
das comparações, do que éramos,
a lembrança de termos sido devorados vivos.


quinta-feira, fevereiro 22, 2024


Há muito que existimos, e os corpos
sucedem-se como vagas,
a luz aprende tudo de novo, o espanto,
a doçura e logo depois a desolação,
é tão antigo e tão frágil, tudo
à beira da extinção, hoje
também os deuses estão na merda,
mal sabemos o que fazer com o escuro,
por isso te pedia cada gesto,
eu precisava ver, colhia as migalhas
com que desenhavas a fome aos poucos,
as luzes seguiam-te como pirilampos
fixando brevemente esse contorno indo
e vindo no corredor, a cama vivia de ecos,
de um enredo de séculos, e nós
encarnando figuras que não tiveram tanto
tempo, passamos os dedos, repetimos
os nomes que nos ocorrem, como acontece
nos livros, a rede de odores que prendem
num jardim um gigantesco ser,
brincamos, ofendemo-nos tocando
memórias alheias, vestes-te depressa,
a voz alterada, e já és outra quando peço
desculpa, talvez amanhã ou depois
um de nós chame, esperando quase
suplicando que outro responda.


quinta-feira, fevereiro 15, 2024


Todos os caminhos servem,
os presos sabem-no melhor que ninguém
como a distância é a mais bela
das nossas ocupações,
os homens que vão têm esse amor
absurdo à coisa seguinte, gostam mais
da mulher do outro, até dos filhos dele,
só porque têm de partir, deitam-se sem
perder o sentido dos ventos, das montanhas
da água, do céu e da terra, comem e bebem
trocam o que podem, deixam o resto, 
cantam e correm, e quando se vêem presos
queimam os dedos em restos de estrelas,
escondem coisas que não existem,
usam aquele olhar de quem guarda
um segredo espantoso, usam a fome
como uma droga, brilham para o seu mundo,
derivam nessas lúgubres fantasias,
e deixam-nos os cochichos melodiosos,
alguém mais tarde irá copiar para uma pauta
a canção que surgiu muda, raspada
no chão da cela, e como balouçava toda,
a última mulher fez muito da vida
ali trancada, fez a sua vingança bailando,
os longos cabelos, os braços levantados
e ria sozinha, desenhando um círculo
com os pés descalços, imagino
que tenha tido mais alguns amantes,
pois há sempre outros corpos por descobrir
no gosto que fica na língua, no idioma,
nessa memória e rastro que serve
aos que sabem devorar-se para morderem
o lábio da eternidade, e eu ouvia o ruído
ao passar no corredor, encantava-me
mas não provei os bagos que crescem
nas raízes entre as pedras
alimentadas pelo clarão da lua,
ainda pude reter o assobio dela,
mas com os séculos aonde irão parar
estes dentes, alguém mais há-de sorrir
exibindo-os? Sinto já o frio
em algumas das partes, peso três vezes
o que ela pesava, e tenho pena,
pois devia ter rodado a chave.


segunda-feira, fevereiro 12, 2024


Já não lhes sinto falta, às amantes todas
que não tive, às vezes até me falta o ânimo
para a ração desse cu fresco
com que me fazias contar, não sou
aquele rapaz de feições gregas que dorme
com a cabeça sobre as mãos, eu mal
me reconheço entre as marcas de abuso,
tantas linhas riscadas, perdi a fome
desse corpo que não se mostrou mais,
como se um mundo pudesse dissipar-se
ou deixar apenas um caroço,
pétalas corroídas, os insectos
que se infiltram na prece diária
junto com lembranças e intimações,
o que oiço aqui ao lado quando a garrafa
já está no fim: fazem planos, parece
que desta vez são muitos, e juram que vão,
largam amarras, mas e depois?
A pele desses sonhos começa a rasgar,
sei o suficiente como qualquer escritorzeco
que se ponha a anotar o que escuta,
sabemos o que se segue, como as ilusões 
depressa azedam, aprendemos a dar cabo
de toda a ênfase, peço desculpa 
provavelmente fiz mal em começar,
mas prefiro isto, chega-me bem a sugestão
seguida da inércia, o gozo de trair a espécie
e só aguardo o momento em que a luz
seja o suficiente para desfazer os homens


terça-feira, janeiro 30, 2024


Ainda hoje dispersos por miseráveis quartos
os nossos corpos respiram entre sílabas
certas claras onde a vida bate
recordando os gritos das celas de outrora
nenhum acaso aqui além do jarro
e dos insectos com a sua triste música
alguma coisa se cala o dia finda
e da janela espreitamos
este sol que andou nos navios e
chegou ao porto já frio sem luz
alguém há-de comprá-lo arrastando-o
para o escuro rumor de uma casa
e a ele que roeu séculos
que tanto se riu dos homens
que dignidade lhe restará
além de se apagar escutando
o miúdo calar de cada coisa

não sei que idade poderia ter eu
para aguentar com isto, deito-me
cada vez mais cedo, e fumo
das mãos de outros, destes que leio
e também a mim, António, 
os pássaros me insultam na cama,
soa-me lindamente, parece que deram
com o tom certo, e tiram daí 
uma primavera do avesso

na queda do sono bebo-a de um gole
este sabor antes da inconsciência,
o sabor de se perder, de levar na boca
a noite repetida, o gosto do fundo
de que falavas, e que agora, tendo tu
ido à frente, se percebe melhor.


quinta-feira, janeiro 25, 2024


Espiamos os fogos acesos
ao longe, e aqui no fresco claro-escuro
da bela tarde que tomba, tudo nos parece
saciado, os caules de um ramo
de cravos brancos
pousando num vaso de mármore,
esse molho de folhas dactilografadas
com uma pedra em cima,
um barco deitado agonizando na areia
enfrentando a distância 
que já não lhe pertence, e o mar que
ainda lhe diz qualquer coisa, mas o quê?
A claridade atravessa-nos, o sal
deixa os olhos calcinados,
agora parece que tudo recua
e se desfaz, tornamo-nos vagos
frágeis como lembranças vagueando
por dias apagados. Tens ainda
um copo de água fresca
e um uivo ao lado, a possibilidade 
de acordar os mortos, ouvir deles
o resto da frase, aquilo
que os susteve trauteando no escuro.
Podes raspar o colibri no muro,
fica-nos sempre uma cor impossível
nos dedos, um cheiro
que vai e vem, e agradeces
esse gosto de rabiscar que deu origem
aos gatos. Rente à transformação 
abandonamos os limites,
as linhas onde se mistura o brilho
das últimas imagens, rodeados
de velhos atlas, da mobília roída,
do ar carregado da urina
e da incontinência dos loucos,
das vozes baixas dos que deliram
imitando os vivos. A sombra que te seguiu
todo este tempo desde a primeira batalha
até à cozinha, a esta hora do dia
alegra-se diante dos pêssegos, dos azulejos
brancos, da madeira lisa, sente-se
o perfume do fim, o silêncio que abafa
um longínquo rumor,
e é doce ter ainda uma hora ou duas
para saborear as hipóteses de um epitáfio.

quinta-feira, janeiro 04, 2024


não tenho segredo nenhum, nada em mim
que se dissesse mais alto causasse
grande desordem,
mas não posso ser apenas uma coisa,
e vivo terrivelmente como sabes,
talvez se o fizesse por moedas numa esquina
uma nota decente me escapasse
atingindo em cheio alguém, 
pedimos isto e o outro à luz, 
e algo quase se mostra,
mas é o ouvido que realmente inventa
e pela música é possível esfregar-lhes na cara
outra sensação do mundo, o peso
de um cuidado que nos domina,
leva anos, e perdemos o nosso lugar
assim se ontem não te vi, faltou-me a coragem
o sentido da aventura, escondi-me
entretido a copiar cadáveres de insectos
para a pauta, zumbiam de roda
de uma taça de frutas, perdoa-me
a música que criámos deixa-me nervoso
ainda a oiço e refugio-me, por segundos
sinto que rejuvenesço
se alguém pudesse pagar este quarto
talvez a noite se deixasse compor
se pudesse lavar-me a roupa, pendurá-la
nos fios, deixá-la nas sebes, não, eu sei,
mas pelo menos come qualquer coisa,
queria falar-te de um tempo que houve
antes de tudo serem remorsos, o silêncio
era perfeito, parecia mendigar cada frase,
agora zumbe apenas, e as frutas
já ninguém as comeria, do podres que estão


domingo, dezembro 31, 2023


dantes os pássaros alimentavam-se
da carne de capitães mortos
persistiam os navios meio digeridos pela névoa
e os gritos frutificando rente ao infinito
algum rumor sem rumo regressando a terra 
um anel ou um dente entre a espuma
e pelos sonhos entravam no corpo
as impressões de outros 
escutadas em lugares onde se vivia
à míngua
entre a reclusão dos espaços pequenos
a dolorosa intimidade com as coisas
num país de olhos escuros 
segurando o além a lâmpada latejava
e a água acordada sentia-o
nos nossos passos
peregrinos de tudo o que lhes chega
signos entre os quais se perde
a própria sombra
real irreal e o pingo que resta
até ao fim de tudo
e mesmo que os não sirvam mais
gira ainda sobre a mesa o anel bêbado
conversam alto por ali onde se abre
a noite magnética
e em volta das velhas cidades, quase
apagadas, corre ao mesmo nível
o rio de estórias 
ainda que ninguém abra os cadernos 
um trovão amadurece numa folha
de um girassol já escura a pétala
luz carbonizada de um grande tumulto
as sílabas húmidas
recitam a distância que somos
do nome à ausência
que te faz recair de novo em ti


quinta-feira, dezembro 21, 2023

Chegar ao ponto


Ele rema sozinho, planta a madeira velha e lisa
ao de leve na corrente. Está fascinado
com o som da água apartando-se, com o sussurro
contra os flancos batidos do bote. 
Ela contempla o céu, segurando contra o peito
o remo húmido; ensopa-lhe o tecido
e depois a pele. Já lhe passou o arrufo.
Agora está fria; a luta já não a alimenta.
Ele resmunga, “Contrariamos a ordem das coisas,
perdes constantemente o ritmo; andaremos
em círculos se não me deixas ser eu a fazer.”
Como pode ela responder a esta lógica:
“Sonhei que o fazíamos juntamente,
Vi-nos a deslizar com uma sensação
deliciosa — a escaramuça dos amantes.
Imaginei-nos a cortar assim a superfície
ou pelo menos a tentar e a rir-nos disso”?
Portanto, faz ele, e dá-se então o romance:
um crepúsculo lerdo de verão, a lua crescente
sobre a orla do pântano, a água
quase tépida, um vagar amistoso e soturno,
os chapéus de palha, as fitas vermelhas,
o casaco desportivo, a saia ampla, 
a sacola das tintas e dos pincéis,
a panóplia de um piquenique,
o aprumo de um bote à deriva
por um lago plácido, as rochas
de sépia e estanho ao lado. E diz ela,
“Não, faz tu. Eu fico a ver.”
E ele pergunta-lhe se está feliz,
se aprecia a água, a vista;
se a sua paisagem, a aguarela
húmida de um arbusto esgalhado
lhe agradou, se gostou. Ela ouve
“Vieste-te?” e responde, de boa fé,
como sempre. “Muito agradável,
foste muito querido” — porque basta.
Ela segura o remo contra os seios,
o duro cabo a apertar um mamilo
ao ponto de lhe marcar a pele.

- Kwame Dawes
da sequência Fishing (Na Pesca)
Tradução de Margarida Vale de Gato

quarta-feira, dezembro 20, 2023


Aguardamos pela repetição do mundo
vivendo de restos, da prosa das noites
em voz baixa repetindo a posição das ilhas
os detalhes que decoramos no escuro
debaixo das pontes como dantes embarcados
separando os destroços de naufrágios
para vender aos turistas 
dessas vagas ainda chegam a esta página 
alguns salpicos
abres sobre a mesa um mapa antigo
e a luz eléctrica perde força, 
o quarto é clareira, a colcha corroída
com a mão sobre a chama do candeeiro
moves as figuras e dá-te a sensação 
de estares a sonhar imerso
numa luz viva mas tão distante do astro
que lhe deu corda...
Aí te achas, banido, e na água onde
o teu rosto se altera
outra semelhança se apropria do reflexo,
como de castigo as imagens que criamos
tentando despertar outra e outra vez
ou as listas que fazíamos para magoar o tempo
ouvir a sua música distante.
A memória serve-nos a sua cerveja
e na mesa ao lado um tipo alto magro
atraindo olhares curiosos
com os braços tatuados de pássaros 
interrompe-se e esfrega as mãos
para desembaraçar a linguagem 
e logo o seu bafo de lenda nos atinge
escreve tão depressa, e o mundo repete-se,
repete-se e ele colhe na água
entre mil gritos e tantos reflexos
os mais radiantes destroços
que lhe trazem à voz aquela precisão
e a brusca urgência de quem se afoga.


segunda-feira, dezembro 11, 2023


devo saber-te de cor, porque tive
a paciência, fui hábil
rezava ao mais lento dos deuses
guardei muito tempo na boca um gole
do mais brusco vinho que esta terra nos deu
conhecido de poucas horas adivinhava
como o querias, virei a boca para o teu lado
e junto ao ouvido onde dorme uma abelha
disse-te o que sabia da vida sempre
atento às infracções e a corpos deitados
à luz de astros vergonhosos
e como manda a ordem erótica que se vá
por fora, devemos trair as sombras
enganar no vidro os nossos reflexos
trocar a flor pela carne, e entre membros
de cor verde desenhar gestos largos
como as estações, sermos dignos
de morrer por um provérbio
por um pouco de sal em vez de um rumo
não chamando casa a coisa nenhuma
pois se o mundo nem começou ainda
vem e deixa que te veja enquanto a luz muda
e sinta o ponto onde o dedo se enterra no queixo
a linha em que o instante se divide
então oiço algum verso vir de outra língua
como a mulher na sombra das ramagens, 
e nós quietos, a falarmos um ao outro baixo
aproveitando tudo, e se já ninguém
sabe onde fica o coração,
que lhes dizemos senão que pode bem
ser aqui, onde a terra seca se abre
mesmo que passem anos sem que
uma gota caia está muito bem para nós 
contando que seja difícil, que nos acusem
de todas as vezes de sermos absurdos


segunda-feira, dezembro 04, 2023


Abre as mãos e mostra as pétalas
desse tempo, detalhes que deram cabo
de nós, a luz que depois 
vinha colher os cacos, não sei
o que me dizem hoje, vejo uma idade
reduzida ao caroço, 
as mesas de noite ainda entram pelo mar
há uma hesitação que persiste
como a terra momentos antes de ser sacudida
uma música que nos leva de um gesto ao 
outro, como o sentires que algo se alterava
mudando uma laranja
de lugar, em atenção às sombras,
vejo o velho quarto e ela ainda
desfiada sobre a cama,
o mesmo aroma vivo como uma pedra
num eterno desequilíbrio, e oiço
o nome que me deves
atravessamos a rua atrás de nós próprios
ouvindo uns passos, e o aranzel
de quem se perde
são a melhor ocupação que temos
as ruas, e se vemos uma casa aberta
a louça tosca, pratos copos
entramos pedimos trabalho 
inventando o que nos gostaria mais, eu
nas histórias de breve moral prefiro 
o ladrão, o que menos se explica,
estes a quem nunca se ouviu
um pedido de desculpas, nenhum lamento 
como certos insectos armados
da sua canção capazes de dar um nó
ao vento, presos por um fio íntimo
assistindo à lenta e doce metamorfose
do mundo, mostraste-me as mãos
e não se lia já
coisa nenhuma, era bom
se tivéssemos sabido ficar quietos.


sexta-feira, novembro 03, 2023


Eu devia jogar esta noite, fosse
no que fosse, sinto no sangue uma tal
adesão à vida, mas não quero apostar
num número e com o sentido torna-se
impossível, o gosto de certas noções
é o suficiente para nos dar cabo da vida,
não se aguenta a vulgaridade
daquilo que emerge pouco depois,
e assim vamos vivendo de recortes, 
cada um com os dedos sujos
de apertar contra si o que lhe aparece,
e um tipo interroga-se sobre que coisas 
realmente estão ao seu alcance,
esse rastro íntimo de que vimos
e que um dia mais tarde nos atinge
com todas essas zonas ainda selvagens, 
aquela lua que se trafica no auge
das palavras, o riso de quem fica
e gosta de saber das horas sentado
aos pés de um muro corroído pelo sol,
isto anima-o, a suave desordem da vida,
e junto ao ouvido diz-te tu
estás aqui pela bebida, bebe então 
o que puderes, e retoma
os aspectos perdidos, o nome que te leva,
as superfícies onde ainda podes
raspar os lábios, perder a boca,
se for alguma coisa um poema pois
deve ser isso.


segunda-feira, outubro 30, 2023


Cedo rasguei o cordão que ia daqui
para o mundo, farejava o já vivido
e virava-lhe costas,
nesse ponto ilegível um murmúrio
escapou-me e houve algo cá dentro
que levantou a mão contra nós.
Perante a glacial indiferença dos astros,
vimos sombras tomar por nós o chá,
virá-lo sobre a carpete, tocavam-se
de forma estranha, despiam-se
e iam decorando de espinhos a casa.
Obrigados a espiá-las em silêncio,
vamos descosendo a insónia um do outro,
ferimo-nos e foi assim que ficaste a saber
as poucas coisas que importam,
desde logo como tudo quanto parece certo
esconde o que há de pior,
que os deuses preferem a treva
e que ninguém apaga a luz neste mundo
como o faz uma puta.
Abres-me a porta, atravessa-nos a sede,
procuramos o poço onde possamos beber
esse reflexo comum, e com a água
já detida na mão em concha 
parece que respiramos pela boca um do outro,
torna-se claro então porque dos amantes 
se diz que sofrem como condenados
sensíveis a cada ponto
à tensão da linha que os cose
de tal modo que de um lado ao outro
se ouve bater a noite inteira há um toque
de telefone impossível de atender
cada ruído se alonga como um suspiro 
range interiormente, soa na própria fibra
no mais fundo da matéria
como uma espécie de música letal.